Kobra expressa “respeito às tradições e à diversidade” em seu trabalho; veja entrevista

Kobra, o artista que assina a capa da edição 119 da Versatille, discorre sobre sua inspirante trajetória de três décadas

Eduardo Kobra

Quando o museu é a rua, não é necessário ser um especialista em arte para reconhecer a obra e o nome do artista Eduardo Kobra, o criador da capa da edição 119 da Versatille. Pioneiro da street art no Brasil e reconhecido internacionalmente, seu trabalho se destaca muito pelo uso das cores e pelo traçado único. Mesmo que você não o conheça a fundo, certamente tem uma familiaridade com muitas de suas obras, presentes nos muros e paredes de mais de 40 países.

 

É justamente a acessibilidade um dos maiores trunfos da street art, que domina as paredes dos bairros descolados pelo mundo, como Wynwood, em Miami; Bushwick, em Nova York; Camden, em Londres; e a Vila Madalena, em São Paulo. E quando se fala no estilo de arte, é impossível não falar do Kobra. Em seus 30 anos de presença nas ruas, o muralista assinou algumas das obras mais importantes da arte urbana em escala global, nas quais frequentemente retrata figuras notáveis como Ayrton Senna, Pelé, Anne Frank, Madre Teresa, Mahatma Gandhi e Dalai Lama. Suas obras sempre trazem mensagens fortes de paz, respeito entre os povos, luta pela liberdade, defesa do meio ambiente e, claro, união.

 

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“Há muito tempo venho colocando essa mensagem no meu trabalho. Acho que o principal é o respeito às tradições, às diferenças de religião e à diversidade cultural. Ninguém é obrigado a ter o conhecimento que você tem, usar a roupa que você usa ou seguir a religião que você segue. Acho que respeitar o universo do próximo pode tornar o mundo um lugar melhor”, comenta Kobra sobre o tema norteador da edição. 

 

Atualmente, aos 45 anos de idade, seu principal foco é a arte como instrumento de transformação social, propósito que o levou a criar o Instituto Kobra, além de facilitar o acesso de jovens em comunidades periféricas à arte e à cultura, também promover ações beneficentes para causas importantes e coerentes com seu trabalho. Um de seus feitos recentes foi a venda da obra Respirar para o movimento União BR por 700 mil reais, valor que foi doado integralmente para a instalação de duas usinas de oxigênio no estado do Amazonas. 

 

Confira trechos da entrevista com o artista Eduardo Kobra.

 

Versatille: O que o levou a fazer arte?

 

Kobra: Foi uma questão interna, uma forma de eu me expressar. Não tinha a referência de que se fizesse isso iria ser reconhecido, estar em uma galeria e até em um museu. Nem que conseguiria viver da minha arte. Sempre continuei porque sou muito teimoso, para falar a verdade, muito insistente. Comparado aos meus amigos do começo, o meu desenho não era dos melhores. Eles tinham muito mais capacidade do que eu. Mas nunca me deixei abater. Eu sempre pensei que iria aprender de qualquer forma. Trabalhava aos sábados, domingos, feriados, todos os dias, de verdade mesmo. Foram 30 anos de muito empenho e as coisas foram acontecendo espontaneamente. O meu trabalho é puramente intuitivo. Mesmo tendo acesso e tendo visto os principais museus do mundo, conhecido grandes artistas, eu ainda procuro seguir pintando aquilo que eu sou. Acho que é essa a diferença que permite que o meu trabalho continue vivo até hoje, pois não é fake.

 

Versatille: No início da carreira você buscou formas de trabalhar com arte para poder pagar a arte que queria fazer, o que gerou críticas de colegas. Como foi isso?

 

Kobra: Os meus pares, artistas de rua, tiveram muito preconceito. Eu venho de uma origem bem simples, no bairro do Campo Limpo [cidade de São Paulo], e não tinha acesso às informações. Muitos dos artistas da primeira geração já tinham outra bagagem e conhecimento. Além disso, também tinha a questão da sobrevivência: os trabalhos encomendados eram necessários para pagar o meu aluguel, água, luz e comida. Mas, mesmo nesses projetos, eu me dedicava a aprimorar o estilo e a linguagem. Eram os bastidores, meu trabalho paralelo. Os clientes pediam para eu copiar a Monalisa e eu tinha de me virar. Hoje eu vejo que foi muito interessante o fato de eu ser autodidata, pois acabei criando um caminho bem desprendido e não tive a preocupação de me encaixar.

 

Mural Clube 27, em Nova York (Divulgação)

 

V: O que mudou na sua visão como artista nas três décadas de carreira?

 

K: A arte é infinita. Isso é o que me move, sabe? Sempre tem algo novo para aprender. Por mais que eu esteja há 30 anos fazendo isso todos os dias, ainda olho e vejo trabalhos e me pergunto como a pessoa chegou àquele resultado. O grande divisor de águas foi o momento em que comecei a trabalhar com as minhas mensagens e os temas que eu acredito, e assim me comunicar através das pinturas, algo que sempre busquei. No começo para mim era impensável porque eu reproduzia obras de todo mundo. Eu pintava escolinha, oficina mecânica, sorveteria, tudo o que pedissem. Reproduzia muitas obras de artistas famosos, pintava em materiais diferentes, vidro, madeira, plástico, chão, teto, geladeira… Foi árduo. E tudo o que eu vou fazer, sei que vou aprender de alguma forma. Eu fui em países onde a história da arte nasceu e mesmo ali existem preconceitos com a street art. Acho supercurioso esse bloqueio com a arte de rua, sabe? Ao mesmo tempo, sou muito grato por fazer parte do movimento que de certa forma revolucionou e segue revolucionando a história da arte.

 

V: Como você lida com o reconhecimento como artista e com o público?

 

K: Eu não me apego a isso, embora perceba pela quantidade de convites que recebo. De 2019 para cá foram cerca de 40 convites internacionais. Lugares importantíssimos, como a fachada do World Trade Center em NY, onde estão construindo a segunda torre. Meu trabalho acabou se expandindo muito além do que imaginei e sonhei. E lido com isso com muita paz, tranquilidade e responsabilidade. É um desafio muito grande receber um convite para pintar um painel nos Emirados Árabes, por exemplo. São meses de negociação com o governo. Tem coisas que já não dependem só de mim, não é apenas pintar. Há toda uma estrutura para desenvolver um trabalho dessa magnitude, e são questões que estou aprendendo na prática. Os convites são paredes em branco. O que eu vou fazer com essas paredes? É outro nível de desafio.

 

A obra Davi, na comuna de Carrara, na Itália (Divulgação)

 

V: De que forma você vê a efemeridade da street art?

 

K: Durante muitos anos tive o pensamento de que a arte de rua é efêmera, que pode apagar e pintar por cima. Mas hoje eu penso que pode ser um pouco diferente. Quando vou pintar, eu me preocupo com a preparação da parede e a manutenção do trabalho. Porque assim como eu vi no México, com os murais de Diego Rivera, eu acho um prejuízo muito grande para as futuras gerações a gente não ter um mural da dupla Os Gêmeos para apreciar. Ou não ter nada do Banksy. A fotografia pode até eternizar, mas não é a mesma coisa que ver a obra no local. Existem mecanismos. No Egito as pinturas estão sendo preservadas. No Louvre, provavelmente a maioria daquelas obras não existiria mais se não fosse por processos de restauração. E por que na rua não é assim? Fico me perguntando. Por exemplo, eu vi alguns trabalhos do Keith Haring da década de 1980 na Itália. Acho fantástico que mantiveram aquela obra. Caso tivessem apagado, eu não teria tido esse contato. Hoje o pensamento está muito descartável, ‘‘apaga e faz outro”. Não sou favorável a isso. É como se você entrasse num museu e falasse “apaga tudo e põe outras telas. Tem coisa que é legal manter. Mesmo porque tem tantos prédios disponíveis. Por que pintam sempre no mesmo lugar? Por que não pintam em outra parede? Eu não sei, é só uma ideia. Eu já não acho mais tão legal apagar obras. Antes eu não ligava, acho que deve ser a idade [risos].

 

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V: Muitos artistas hoje em dia fazem parcerias e campanhas com marcas. Como você trabalha isso?

 

K: Eu faço pouquíssimas associações com marcas. Há uma forma correta de fazer, e sou muito meticuloso nesses aspectos. Não quero transformar o meu trabalho num catálogo, onde você vai e compra uma garrafa ou seja lá o que for. Estou falando por mim, não estou criticando quem faz. O Instituto Kobra é uma forma de me associar a marcas parceiras com um objetivo e de forma correta. As parcerias são delicadas. Já recebi convites para fazer rótulos de uísque e vodca bem importantes no mercado internacional. Eu tenho total respeito pelas marcas, era até algo que eu almejei por um tempo, pois grandes artistas já fizeram, como Andy Warhol. Porém, hoje, não tenho mais como fazer esse tipo de ação. Estou lidando com crianças, eu mesmo já não bebo há nove anos, então não faz sentido estar envolvido com uma marca de bebida. Precisa existir uma coerência entre aquilo que você é e a sua arte. Não tem como desconectar.

 

Eduardo Kobra

 

V: As suas obras sempre trazem um propósito. De onde vem a inspiração para os temas?

 

K: Eu sempre imagino nos meus murais temas que me tocam, não só pela estética. O projeto Muro das Memórias tinha um objetivo: eu estava visitando uma exposição na Avenida Paulista de fotos antigas da região. Aí de repente, quando olhei pelo vidro, vi que todos aqueles casarões já tinham sido demolidos. Criei o projeto para fazer um paralelo e falar da importância da preservação histórica, porque no Brasil não temos essa cultura, acabam demolindo e incorporam um novo prédio. O Greenpincel também, falei sobre a proteção dos animais e questionei qual é a necessidade de os colocarmos presos em um lugar só para entretenimento.

 

V: Como você fez a transição da sua arte e marca para as ações sociais e a criação do Instituto Kobra?

 

K: Eu pego os temas com os quais já trabalho e materializo isso, é mais um processo natural. Comecei a imaginar como poderia transformar minhas mensagens e ajudar o próximo. No momento, estou revertendo muitos trabalhos para ongs, instituições e pessoas em situação de vulnerabilidade. No Instituto Kobra, já começamos a atuar de forma on-line mesmo, mas vou tratar disso com muita calma para que não seja algo que daqui a pouco não exista mais. Quero conseguir os parceiros de uma forma bem transparente para poder transformar vidas através da arte. Não só com a pintura, mas outras manifestações artísticas. Tudo é embrionário ainda, mas já temos pessoas querendo ser voluntárias, empresas querendo patrocinar. Estou estruturando isso de uma forma que fique como legado. Um retorno mesmo do meu trabalho para as minhas origens. É uma volta, lembrando de quem eu sou: um menino lá da periferia em busca de uma oportunidade.

 

V: Já que você tocou no assunto, qual é o legado que você quer deixar?

 

K: Se eu conseguir deixar não as pinturas em si, mas as transformações das vidas através do meu instituto, acho que aí terei conseguido atingir o meu objetivo. Porque hoje, mesmo sendo autodidata, o meu trabalho é o segundo mais requisitado para livros didáticos do Brasil. Em primeiro está o Oscar Niemeyer. É tudo novo para mim. Eu não sei como lidar ainda, mas espero conseguir manter. É incrível imaginar que crianças estão estudando o seu trabalho em sala de aula. É ver como valeu a pena toda essa insistência e os anos de trabalho árduo.

 

V: Qual é a sua parede dos sonhos? O que ainda podemos esperar do Eduardo Kobra?

 

K: Eu realizei esse sonho já, que são os murais em Nova York. Comecei a pintar por influência dos artistas de lá, dos trens. O maior mural hoje em Manhattan é o meu, na escola onde o Basquiat estudou. É um sonho que eu realizei, sabe? Hoje há outras mídias que estou explorando. Estamos produzindo um livro bem-feito com toda a minha trajetória. Acho que isso vai ser um marco legal falando do meu trabalho. Também será lançado em 2021 um filme da cineasta brasileira Lina Chamie, no qual trabalhamos por dois anos. Plataformas de streaming estão cotando para séries, para ser apresentador e viajar pelo mundo mostrando artistas de rua. São muitos projetos que estão em processo. Exposição também, eu fiz duas ou três na minha vida toda. Não explorei quase nada. Não sei o que vai acontecer, mas tenho certeza de que continuarei pintando. 

 

por miriam spritzer

fotos gabriel bertoncel

Matéria publicada na edição 119 da Versatille

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