7 projetos de gastronomia social que merecem a sua atenção
Muito além de pratos que trazem sabores surpreendentes, a gastronomia atua como um dos caminhos para o combate à fome e a melhoria na qualidade de vida
Para quem acompanha a alta gastronomia, o Projeto A.MAR é um nome conhecido. Seus produtos sustentáveis − como frutos do mar em conserva e ovas − estão presentes em restaurantes renomados da capital paulistana, como Evvai e Maní. Em eventos e jantares especiais, a marca também se faz presente, o que fortalece a sua correlação com a movimentada gastronomia nacional. No entanto, basta uma conversa com o publicitário Rodolfo Villar, criador do projeto, para entender que essa é apenas a ponta do iceberg.
A coluna vertebral, que mantém tudo em pé, é a atuação social. “Nosso trabalho começou em 2004, falando sobre a preservação de peixes sem energia elétrica. Técnicas essenciais para que pescadores artesanais de comunidades isoladas tivessem autonomia”, reforça Villar. “Foi só em 2017 que começamos a vender os nossos produtos, como uma forma de divulgação do nosso trabalho. Mesmo assim, toda a nossa venda retorna para a comunidade. É um ciclo completamente social.”
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Por trás da alta gastronomia, há uma presença intensa em comunidades isoladas − principalmente na região de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, onde o projeto nasceu. É a partir desse contato que técnicas de defumação, fermentação, conserva e charcutaria são ensinadas aos locais. Uma maneira de impulsionar a autonomia alimentar e agregar valor ao pescado artesanal.
Antes, peixes eram vendidos a um preço muito abaixo do mercado porque tinham o risco de estragar a qualquer momento. Hoje, com técnicas de conservação, o poder de negociação dos pescadores aumenta, o que impacta diretamente na geração de renda local. “Alterar esse ecossistema sempre foi nosso grande objetivo”, ressalta o publicitário. Com sucesso, o mercado gastronômico tem sido um ótimo apoio para o projeto.
Vale dizer que esse não é um caso isolado. Na verdade, o A.MAR é um ótimo exemplo de gastronomia social − afinal, a gastronomia é, em sua essência, o estudo das relações entre a comida, a cultura e a sociedade. A correlação é forte, mas é importante ressaltar: falar de comida é falar de gente.
Para o chef David Hertz, o conceito é compreendido há anos: “Surgiu para mim em 2005, após ter observado a importância dos projetos de impacto nas comunidades. Ficou muito claro que a gastronomia precisava ter uma função mais inclusiva”, recorda. “Eu sempre viajei muito e tinha noção de que a desigualdade brasileira era muito diversa de outros lugares do mundo. A partir desse contato com diferentes realidades, criei muita consciência e percebi quanto eu conseguiria gerar valor social por meio da gastronomia.”
Esse foi o pensamento propulsor para que Hertz criasse a ONG Gastromotiva, organização que oferece formação profissional a moradores de comunidades que querem trabalhar com culinária. Dentro do projeto, ainda há o Refettorio Gastromotiva, restaurante-escola onde os alunos dos cursos da Gastromotiva e renomados chefs convidados cozinham juntos, de segunda a sexta, refeições servidas a pessoas em situação de vulnerabilidade social no Rio de Janeiro.
“Esse projeto tem como centro o desenvolvimento humano por meio da criação de oportunidades, como geração de renda, autonomia financeira e empoderamento pessoal. São coisas que todos buscam e merecem na vida”, explica o chef. “Alimentação e beleza são as economias que mais geram trabalho local. Por que não transformar isso em um caminho para dar mais dignidade e trazer uma visão empreendedora para as pessoas? É essa equação que pode transformar as comunidades de baixa renda, fazendo com que a população se apodere das próprias habilidades e competências.”
Na visão da chef Manu Buffara, do restaurante Manu, tudo parte do princípio de que o bom alimento está na base do desenvolvimento da sociedade e é um princípio básico da dignidade humana. Criadora do Instituto Manu Buffara, que organiza anualmente o evento Alimenta Curitiba, com foco na educação e inclusão dos bairros mais necessitados da cidade, ela acredita que a gastronomia seja um caminho para o desenvolvimento pessoal, profissional e social de pessoas em situação de risco. “Ações educativas são itens fixos do instituto. Queremos, acima de tudo, fazer a diferença no avanço da sociedade, no aumento da qualidade de vida e na diminuição das desigualdades. A comida pode gerar inclusão social”, opina a chef.
Mais do que capacitação, no entanto, Manu destaca outro forte pilar da gastronomia social: o combate à fome. “Projetos sociais que promovem a distribuição de comida, o aproveitamento de sobras e o combate ao desperdício podem ajudar a garantir o acesso a alimentos saudáveis e nutritivos”, explica. Conhecida por seu apreço pela redução do desperdício e pela preservação da vida selvagem, a chef chegou a participar da construção de jardins urbanos em Curitiba, transformando partes abandonadas da cidade em áreas onde as comunidades podem se alimentar. Hoje, o projeto inclui 89 jardins urbanos e envolve cerca de 5 mil famílias.
Para ela, esse tipo de preocupação é essencial em meio a uma sociedade com dados espantosos sobre a fome. De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), divulgado em julho de 2022, a quantidade de brasileiros que enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar durante os anos da pesquisa − de 2019 a 2021 − ultrapassou a marca de 60 milhões. No mundo, já são 830 milhões de pessoas com fome, segundo o Índice Global da Fome (IGF), também divulgado em 2022. Crises como a pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia e a mudança climática têm agravado a subnutrição, e não há previsão de melhora até 2030, conforme prenunciado na chamada Agenda 2030, traçada pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Sem expectativa de melhorias em curto ou médio prazo, torna-se ainda mais urgente a dedicação de empresas, conglomerados e civis em prol de ações sociais. “Precisamos de subsídios, incentivos e uma mudança de cultura do brasileiro, que precisa ser mais solidário. Muitos colaboraram na época da pandemia de covid-19, mas parece que isso não ficou tão enraizado”, ressalta Hertz. Embora alguns avanços sejam percebidos, ainda há um longo caminho a trilhar. “A gastronomia cria essa ponte para que a gente possa comer junto, dialogar e ajudar aquele que é diferente de nós.”
Para quem tem interesse em acompanhar projetos de gastronomia social ao redor do mundo, a Versatille listou alguns trabalhos − além das iniciativas de David Hertz, Manu Buffara e Rodolfo Villar − que merecem atenção:
Massimo Bottura, Food for Soul
Food for Soul é o projeto do famoso chef italiano Massimo Bottura, que ajuda pessoas em situação de vulnerabilidade social. A iniciativa foi documentada com mais detalhes no filme Teatro da Vida.
Rodrigo Oliveira e Adriana Salay, Quebrada Alimentada
O casal Rodrigo Oliveira (chef do restaurante Mocotó) e Adriana Salay (historiadora e pesquisadora da fome pela USP) criou o Quebrada Alimentar, um projeto de distribuição de quentinhas feitas pela equipe Mocotó à população do entorno do restaurante, na Vila Medeiros, em São Paulo.
Edson Leite e Adélia Rodrigues, Gastronomia Periférica
O projeto Gastronomia Periférica oferece profissionalização na área gastronômica para moradores das periferias. O sistema surgiu em 2012 como uma oficina de capacitação e, em 2018, foi transformado em escola.
José Andrés, World Central Kitchen
Fundada em 2010 pelo chef espanhol José Andrés, a World Central Kitchen nasceu com o objetivo de fornecer refeições após desastres naturais. Em 2019, Andrés foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho. Em 27 de maio, o documentário We Feed People, da National Geographic, estreou na Disney+. Na obra, é possível acompanhar os bastidores da organização.
Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 133 da Versatille