Vinhos naturais: conceito, história e 6 sugestões de rótulos para começar a beber
Bruno Bertoli, proprietário e sommelier do Beverino Vinhos, compartilha um dossiê para compreender o universo vasto dos naturais
Os vinhos naturais estão cada vez mais presentes nas taças servidas nos espaços à vanguarda da gastronomia, mas seu entendimento ainda segue, para muitos, “nublado” por um véu de hermetismo: por um lado há a confusão semântica duma série de termos que se sobrepõem (naturais, de baixa intervenção, orgânicos e biodinâmicos); e por outro a própria amplitude de perfis aromáticos que tais garrafas podem desvelar, ora apresentando sabores inusitados e ora mostrando-se tão elegantes e lineares quanto os vinhos mais clássicos e convencionais.
Não há forma melhor de desenovelar essa rede do que pela experiência do beber, e assim, conhecer diferentes estilos e entender aquilo que mais converge com o seu paladar.
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Selecionei seis diferentes rótulos, entre uvas brancas e tintas. Confira na sequência:
Espumante: Vivente Pét-nat Glera/Chardonnay 2021
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Pét-nat é um termo corrente entre bebedores de vinho natural, uma aglutinação oriunda do francês pétillant naturel (espumante natural) para designar espumantes de perfil mais leve e descontraído, vinificados a partir do método ancestral (envasados com a fermentação em curso, que finaliza na garrafa gerando a carbonatação), dos quais um excelente exemplo é o da Vivente, entregando frescor e uma boca de fruta vibrante carregada por um borbulhar delicado. Esse projeto nacional se associa a viticultores na Serra Gaúcha, subsidiando sua conversão para manejos mais sustentáveis, e se fez conhecer primeiro pelos espumantes.
Branco Clássico: Muscadet Sèvre et Maine 2022, Domaine de La Pépière
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Para quem busca brancos que se distinguem sobretudo pelo frescor e mineralidade, são poucas as regiões no mundo que conseguem entregar o equilíbrio entre preço e qualidade que se encontra no Muscadet, situado na foz do rio Loire. O Domaine de La Pépière foi uma das vinícolas que ao fim dos anos 1980 se distinguiu por um trabalho de valorização desse terroir, abandonando uma lógica de produção em larga escala para valorizar formas de cultivo mais íntegras e vinificações que exprimissem o potencial de cada parcela de videiras. É um branco de perfil mais clássico para aqueles que buscam uma introdução mais gradual ao mundo dos naturais, aqui por um feixe salino e mineral de grande frescor.
Branco Inusitado (Laranja): Reìs 2021, Rocco di Carpeneto
Embora fermentar as uvas brancas com as próprias cascas seja a maneira mais antiga de transformá-las em vinho essa abordagem caiu em desuso nos últimos séculos e vem recuperando notoriedade graças aos produtores de vinho natural. Um bom modo de conhecer esse estilo é o Reìs, fruto do trabalho de manejo biodinâmico conduzido em velhas videiras por um casal piemontês nas colinas do Monferrato. O vinho combina a complexidade e amplitude de fruta envolvida por uma filigrana de taninos dos laranjas mais encorpados, com o frescor e bevibilidade daqueles que passam por menor tempo em contato com as cascas.
Rosado: Lazy Winemaker Rosé 2021, Viña Echeverría
Quase arquetípico do que podemos esperar de um rosé natural é esse vinho elaborado com a casta País, primeira uva trazida às Américas pela colonização espanhola. Fruto do esforço da família Echeverría, ancorada na tradição vinícola chilena, de dedicar-se as práticas mais íntegras de cultivo e vinificação, apresenta em boca uma fruta viva, emoldurada por nuances florais e sanguíneas, num jogo que entremeia alguma complexidade e muito frescor.
Tinto Clássico: Cheverny Rouge 2021, Domaine Philippe Tessier
Se coubesse elencar as regiões pioneiras na constituição do movimento político e estético nos anos 1980 que desenhou na França os parâmetros estilísticos do que hoje entendemos por vinho natural, teríamos o Beaujolas e o Loire em primeiro lugar. Philippe Tessier estava entre esses primeiros vinhateiros e esse corte de Pinot Noir, Gamay e Côt fala muito seja do estilo que se consolidava então, bem afeito para ser a primeira experiência com tintos naturais para um paladar mais habituado a vinhos convencionais. Num enleio elegante temos fruta suculenta, nuances florais e a justa medida de taninos para emoldurar a estrutura.
Tinto Inusitado: Vin de Soif 2018, Domaine Le Mazel
A Ardèche é uma pequena região meridional francesa onde formou-se um grupo coeso e hoje notório de vinhateiros naturais mais à vanguarda, em grande parte instados pelos irmãos Jocelyne e Gerald Oüstric do Domaine Le Mazel. Seu Vin de Soif (literalmente ‘vinho de sede’ em francês) é ótimo arquétipo para os tintos naturais de abordagem mais radical, conjugando uma fruta carnuda à boa persistência em nuances minerais e ainda uma sutil efervescência (que no jargão de sommelier chamamos “agulha”) que eleva o conjunto trazendo-lhe maior frescor.
Glossário para compreender melhor o universo dos vinhos naturais:
Vinho Natural — É um termo polissêmico que engloba uma série de formas possíveis de fazer o vinho, mas conta com alguns parâmetros comuns:
1. uvas provenientes duma agricultura livre de agrotóxicos;
2. fermentações espontâneas (portanto realizadas apenas pela vida microbiológica naturalmente presente nas videiras e nas uvas, sem adição de leveduras selecionadas em laboratório);
3. nenhum aditivo ou correção química (os quais abundam na vinificação convencional e podem ir de correções de acidez à taninos sintéticos, passando por uma gama tão ampla de conservantes que sua mera enumeração já convida recordação de ressacas);
4. filtrações delicadas ou inexistentes;
5. uso muito comedido ou nulo de sulfitos (um sal de enxofre com muitas funções na enologia, entre as quais aquela de inibir a atividade metabólica das leveduras e a oxidação do vinho)
Vinho de Mínima ou Baixa Intervenção Vs. Vinho Natural
Dentro do quadro traçado acima há uma ampla gama de possibilidades, que vão da maneira como se cultiva as uvas até quanto sulfito se adiciona no vinho (e quando isso é feito, se durante alguma etapa da fermentação ou apenas no engarrafamento). Não há um consenso sobre essas categorias, mas costumeiramente aqueles mais radicais e comprometidos com as formas mais puristas de vinificação qualificarão seus vinhos como naturais; e aqueles mais agnósticos ou moderados, talvez não preenchendo completamente os critérios acima delineados, se identificarão como vinhateiros de mínima ou baixa intervenção.
Orgânico e Biodinâmico
A confusão mais costumeira feita por aqueles que são introduzidos a esse léxico que busco brevemente detalhar é a identificação entre vinhos orgânicos e vinhos naturais. Não se trata de maneira alguma da mesma coisa: o selo orgânico em um vinho garante que as uvas a partir do qual foi feito respeitam a normativa para agricultura orgânica no país de origem, mas esse pouco diz sobre a maneira de vinificar essas uvas, que pode continuar sendo industrial. A Agricultura Biodinâmica é uma abordagem agrícola pioneira inspirada nos princípios da Antroposofia, movimento filosófico-espiritual constituído através das ideias do pensador e místico Rudolf Steiner. Assim como a agricultura orgânica prescinde de agrotóxicos, mas se funda numa percepção mais holística da relação entre o agricultor e a terra, assim como numa série de preparados fitoterápicos que visam fortalecer e proteger tudo aquilo que se cultiva. Entre vinhateiros o consenso em relação à essas práticas varia da mais ferrenha adesão ao mais profundo ceticismo. O selo de vinho biodinâmico garante que as uvas utilizadas foram cultivadas de acordo com esses princípios, mas embora seja mais rigoroso do que o selo orgânico ainda permite algumas práticas de vinificação que o desqualificariam como vinho natural no senso mais estrito.
Por Bruno Bertoli