A Veneza de Casanova
Artista, escritor, intelectual e aventureiro. Libertino, sedutor e escroque. Poucos personagens históricos foram tão controvertidos e tiveram vida tão agitada naqueles tempos como o célebre conquistador italiano Ele começou cedo. Aos 9 anos, relatou que já
Artista, escritor, intelectual e aventureiro. Libertino, sedutor e escroque. Poucos personagens históricos foram tão controvertidos e tiveram vida tão agitada naqueles tempos como o célebre conquistador italiano
Ele começou cedo. Aos 9 anos, relatou que já mantinha relacionamento intimo com a balzaquiana Bettina Gozzi, irmã do abade encarregado de sua educação. Aos 15, já tinha certa experiência. Entregue aos cuidados da avó desde cedo — a mãe, atriz, viajava constantemente com uma companhia de teatro, e o pai morreu quando tinha 8 anos —, passou parte da adolescência em Pádua, onde residiu na casa do sacerdote enquanto estudava Direito na universidade. Aprendeu Filosofia, Matemática, Música e Medicina. Foi nessa época que o libertino italiano Giacomo Giramolo Casanova (1725-1798) despertou para dois vícios que o celebrizaram: o jogo e as mulheres.
Sobre Bettina, o primeiro flerte, revelou nas suas Memórias, ter sido ela a mulher que, “pouco a pouco, acendeu no meu coração as chispas, que, depois, se tornou uma paixão dominante”. Terminado os estudos, o jovem Giacomo voltou a sua Veneza natal, onde iniciou a carreira eclesiástica. Conheceu então, Alivise Gasparo Malipiero — senador e proprietário do belo Palazzo Malipiero, no canal de Rialto, que o abrigou e lhe apresentou os melhores círculos sociais da cidade.
Rodeado de boa comida, bom vinho e boa companhia, o jovem Casanova acabou por se envolver com as duas irmãs Savorgnan, ao mesmo tempo. Esse encontro, segundo confessou, impulsionou sua vocação à libertinagem. É verdade que ainda pretendeu seguir a carreira religiosa e chegou a receber ordens menores, mas os escândalos que começava a protagonizar, o jogo e as mulheres encerraram suas pretensões na Igreja e o expulsaram do seminário.
Após a morte da avó, o jovem sedutor ainda frequentou outro seminário, mas as dívidas de jogo o levaram, pela primeira, vez à prisão. De volta à liberdade, exerceu outras profissões, que logo abandonou. Foi oficial militar, jogador e violinista profissional. Depois de visitar Roma, Nápoles e Constantinopla, foi jornalista, pregador e diplomata. Conhecia Filologia, Teologia, Matemática, Física e Música. Adorava jogar cartas e introduziu a loteria na França. Gostava de política e frequentou a corte de Catarina II, imperatriz da Rússia.
Casanova sempre amou as mulheres. Assediava nobres e plebeias, jovens e maduras, louras e morenas, bonitas e feias. Suas memórias confirmam a obsessão em har monizar as alegrias da alcova com a boa mesa. “Cultivar os prazeres dos sentidos foi a suprema preocupação da minha vida.
Sentindo-me nascido para o sexo diferente do meu, sempre o amei e fiz-me amar tanto quanto me foi possível. Também amei a boa mesa com arrebatamento e apaixonadamente todos os objetos feitos para excitar a curiosidade.”
Autoqualificado especialista em psicologia feminina, gostava de receitar menus conforme a sedução almejada. Garantia aguçar seu apetite sexual comendo 12 ostras no café da manhã e 12 no almoço. Sentia-se estimulado bebendo os vinhos brancos da Úmbria e de Chipre, além do moscatel grego. Era um homem bonito, cortês e generoso. Mas, acima de tudo, falava e falava muito sobre tudo: amor, medicina, política, agricultura. “Um homem inteligente pode amar como um louco, jamais como um idiota.”
Dois séculos e meio depois, Veneza celebra o mito romântico na indústria do turismo. É fácil encontrar restaurantes que alegam terem sido “frequentados por Casanova” (não se sabe como), como a Cantina do Mori. O gondoleiro Mario Piccini, acredita que “muito do que atribuem a ele é fantasioso, mas, mesmo assim, é figura mítica, incontestável”. A guia de turismo Giordana Losi é taxativa.
“É grande o interesse e a curiosidade dos viajantes do mundo todo a respeito de Casanova, nosso veneziano mais querido. Muitos pedem para ir à casa onde ele viveu, em Malipiero, próximo ao Palazzo Grassi.” Simone Mazzali, diretora do concorrido Hotel Casanova, não fica atrás: “Veneza é absolutamente impregnada de Casanova. Onde quer que ele tenha vivido, ele é daqui”. Para o comerciante Giacobbe Giuliani, “Giacomo é um personagem indissociável da história de Veneza, nosso herói”.
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FUGA ROCAMBOLESCA
Houve época em que a aristocracia veneziana não tinha o menor apreço pelo encrenqueiro famoso pelos escândalos no carnaval de máscaras da cidade. Eternamente sob a mira das autoridades, em 1755, Casanova foi preso sob a acusação de levar uma vida dissoluta, de possuir livros proibidos e de fazer propaganda antirreligiosa. Esperavam-no cinco anos de cativeiro.
Após 16 meses na prisão, entretanto, o rufião planejou a fuga com o companheiro de cela, o abade Balbi. Na madrugada de 1o de novembro de 1756, ambos escaparam por um buraco que cavaram no teto da cela e atingiram os telhados do Palácio Ducal, de onde não conseguiram descer. Esgotados, adormeceram no forro do telhado, mas os sinos da Basílica de São Marcos os acordaram e os forçaram a procurar uma saída. Acabaram entrando na Sala Quadrada do Palácio Ducal, de onde ganharam um corredor. Um guarda os viu, mas pensou que fossem magistrados que trabalhavam até altas horas, e abriu-lhes a porta. Casanova atravessou a piazetta na corrida, alcançou uma gôndola e se escondeu sob o teto do felze, uma antiga proteção dos barcos, mais tarde proibida por causa dos encontros amorosos que facilitava.
Hoje, os turistas podem atravessar uma improvisada “Ponte Casanova” implantada dentro do palácio, uma pinguela suspeita unindo uma sala a outra que “simula” as dificuldades da fuga. Os chineses adoram a atração. Afinal, Veneza vive do turismo.
Após a fuga, Casanova conseguiu chegar a Paris e, durante 20 anos, viveu entre França, Suíça, Itália, Inglaterra e Bélgica, deixando amantes e dívidas de jogo por muitas cidades. Em Berlim, em 1764, Frederick II, rei da Prússia, ofereceu-lhe abrigo. Também viveu curtas temporadas em Riga, capital da Letônia, na cidade russa de St. Petesburgo e Varsóvia.
Em toda parte, usava a sedução e se aproveitava da embriaguez das mulheres para seduzi-las, enquanto bebia somente café. Desafiado para um duelo por um marido enfurecido, fugiu para a Espanha, onde era pouco conhecido. Tentou aproximar-se de nobres e recuperar os luxos, mas não teve sucesso. Em 1774, com 49 anos, obteve autorização para voltar a Veneza, prontificando-se a se tornar espião da Inquisição. Como tal, assinou 50 relatórios contra banqueiros e nobres acusando-os dos crimes que ele mesmo cometia: adultério, falcatruas, jogatina e libertinagens. Não primava pelos escrúpulos.
LÁBIA CONVINCENTE
Casanova afirmava ter nascido para as mulheres e que a sua ocupação mais importante era amá-las. O escritor Stefan Zweig, autor do livro Casanova: a Study in Self Portraiture afirma que ele queria apenas seduzi-las e entregar-se ao momento. “Não havia truques escondidos na conquista, seu segredo era precisamente a sinceridade do desejo. Não fazia pro messas nem quebrava corações, não contraía dívidas de alma; suas relações eram sempre leais a seu modo, simplesmente de ordem sensual e sexual. Ele não provocava catástrofes e fez muitas mulheres felizes, que saíam intactas de uma aventura de volta para suas vidas cotidianas. Conquistava sem destruir, seduzia sem desmoralizar” , defende Zweig.
Casanova atribuía o sucesso amoroso à forma como tratava as mulheres: atenção, delicadeza e pequenos gestos abriam o caminho da conquista. E alertava: “Qualquer homem que dê a conhecer o seu amor por palavras é um idiota”. Para ele, a comunicação verbal é essencial, “mas as palavras devem ser implícitas, nunca proclamadas diretamente”. Em sua autobiografia, confidenciou ter dormido com 122 mulheres ao longo da vida.
Ao voltar a Veneza, soube da morte da mãe e do primeiro amor, Bettina Gozzi. Falido, abandonou o vício do jogo. Mas, em 1779, tornou-se amante de uma costureira com quem viveu até ser definitivamente expulso da cidade, após escrever uma sátira sobre a família nobre Grimani. Nela revelou ser o patriarca Grimani o seu verdadeiro pai.
Sua tradução em três volumes da Ilíada, de Homero, não obteve sucesso nem dinheiro. Já idoso, em 1795 foi para a Boêmia, na atual República Tcheca, onde foi bibliotecário do conde de Walsdstein-Wartenberg e permaneceu até morrer, em 1798. Nos últimos anos trabalhou como enciclopedista e se dedicou à autobiografia História da Minha Vida, de 28 volumes, escrita em francês.
Embora tenha dito que a velhice lhe foi aborrecida, sem ela não teria produzido uma obra literária. Desde a primeira edição, em 1822, suas memórias têm sido reeditadas, revelando-se um fascinante testemunho da época e um fermento do mito de Casanova — o mais famoso sedutor de todos os tempos.
ESPECIAL TURISMO texto e fotos Johnny Mazzilli | Matéria publicada na edição 98 da Revista Versatille