Surrealismo e design: uma influência fantástica

No Vitra Design Museum, na Alemanha, a mostra 'Objetos do Desejo: Surrealismo e Design 1924 – Hoje' aponta como um dos movimentos artísticos mais importantes do século 20 influencia a produção de designers de diferentes

Quem visita o Teatro-Museu Dalí, na cidadezinha de Figueres, na Catalunha, Espanha, sabe que é difícil esquecer uma das principais atrações do lugar: a transposição da extravagante obra do catalão, Rosto de Mae West, que pode ser usada como um apartamento surrealista, de 1934-35, na instalação de mesmo nome, de 1974, produzida por ele, que era encantado pela atriz norte-americana (foto acima).

 

Em uma sala, os cabelos loiros e cacheados de Mae são cortinas. No centro fica a boca fechada, que se transformou em um vistoso sofá. As narinas, encostadas na parede vermelha, formam uma lareira, e os olhos são quadros pendurados na parede. Para observar a composição, os visitantes são convidados a usar uma luneta especial. Em 1970, em uma espécie de homenagem a Dalí, o italiano Studio65 criou o sofá Bocca (1970), inspirado nos lábios da também atriz norte-americana Marilyn Monroe, que se tornou uma das peças de design mais icônicas da segunda metade do século 20.

Sofá Bocca (1970), de Studio65 para Gufram

 

Tanto esse sofá quanto a obra dos anos 1930 de Dalí integram a grande mostra Objetos do Desejo: Surrealismo e Design 1924 – Hoje, no Vitra Design Museum, em Weil am Rhein, na Alemanha. Com curadoria de Mateo Kries, a exposição, em cartaz até 19 de janeiro de 2020, pretende apontar como o movimento surrealista influenciou a indústria criativa no último século, não só no segmento de mobiliário e interiores, como no design gráfico, na fotografia e na moda.

Prato da série Tema e Variações (depois de 1950), de Piero Fornasetti

 

Cunhado pela primeira vez pelo escritor e poeta francês André Breton em um manifesto de 1924, o termo surrealismo se trataria de, nas palavras do autor, “resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação de uma realidade absoluta, uma supra-realidade”. A teoria logo se disseminou na Europa e nos Estados Unidos. O texto aponta a relevância do universo onírico, irracional e inconsciente, relacionando-se com o uso das teorias de Sigmund Freud e da psicanálise. O imaginário e os impulsos da mente passaram a ganhar leituras em uma nova realidade artística, influenciando o design nos anos 1930 e tornando-se uma tendência que moldou moda, móveis e fotografia a partir da década de 1940.

Man Chair (1970), nº 24/24, de Ruth Francken

 

O surrealismo utilizou objetos de uso cotidiano, devidamente descontextualizados, para formar imagens de sonho, em que ironia e hibridismo se uniam. Já se valiam disso obras-chave da arte moderna, caso, por exemplo, do ready-made do francês Marcel Duchamp, como Roue de bicyclette (1913). Contra o racionalismo e a favor do fantástico, juntaram-se artistas variados. Na literatura, além de Breton, os também franceses Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Bataille, Michel Leiris e Max Jacob são nomes que vale a pena mencionar. Nas artes plásticas, além de Dalí, o belga René Magritte, o francês André Masson, o espanhol Joan Miró e o alemão Max Ernst, naturalizado norte-americano e depois francês. Na fotografia, o norte-americano Man Ray, a francesa Dora Maar e o franco-húngaro Brassaï. No cinema, o espanhol naturalizado mexicano Luis Buñuel.

 

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DESIGN E EVOLUÇÃO
O primeiro dos quatro segmentos da exposição examina o surrealismo entre as décadas de 1920 e 1950. Nesse período, torna-se aparente como o design foi fundamental para a evolução do movimento. Inspirados nas pinturas metafísicas do italiano Giorgio de Chirico, figuras como Magritte e Dalí tentaram capturar o lado misterioso das coisas do dia a dia. Ao mesmo tempo, influenciados por Duchamp, artistas como a suíça Méret Oppenheim experimentavam novas esculturas, criando a partir de materiais encontrados ao acaso. Desde a década de 1930, a busca pelo potencial narrativo dos objetos teve influência crescente sobre designers e arquitetos, como o franco-suíço Le Corbusier. Quando protagonistas do surrealismo foram para os Estados Unidos devido à ascensão do nazismo na Alemanha e à ocupação da França, o movimento também começou a influenciar designers do outro lado do Atlântico, como os norte-americanos Ray e Charles Eames e o nipo-americano Isamu Noguchi.

 

A segunda seção mostra as maneiras pelas quais os surrealistas exploraram os arquétipos dos objetos do cotidiano e minaram seus códigos de significação. Depois de 1945 muitos designers adotaram estratégias semelhantes, entre eles o italiano Achille Castiglioni, cujos projetos costumavam basear-se na ideia do ready-made. Também ali há designs mais recentes que exploram o surrealismo como força motriz, caso da Horse Lamp (2006), do estúdio sueco Front.

Horse Lamp (2006), de Front

 

Amor, erotismo e sexualidade, temas tão caros ao movimento, compõem a terceira parte. No período pós-guerra eles ficam evidentes, por exemplo, nos interiores e nas peças sensuais de mobiliário do italiano Carlo Mollino ou no já citado sofá Bocca. O cruzamento entre surrealismo e design evidencia-se também na moda, promovido mais uma vez por Salvador Dalí, em parceria com a estilista italiana Elsa Schiaparelli. A sombra da sexualidade também encontrou seu caminho em objetos de nomes como o do italiano Gaetano Pesce e do holandês Maarten Baas.

 

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Já o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss chamou de “mente selvagem” está em análise no final do evento. O interesse no arcaico, no acaso e no irracional era evidente no entusiasmo dos surrealistas tanto pela arte tribal não ocidental quanto por suas experiências com materiais e técnicas.

Isso levou a um vocabulário e a uma lógica formais, geralmente caracterizados por formas desenfreadas ou derretidas, como nas pinturas de Ernst e do francês Yves Tanguy. Motivos comparáveis surgiram no design desde os anos 1980, quando passou a se desconstruírem as formas e as tipologias dos objetos. Um exemplo disso é Pools & Pouf (2004), do austríaco Robert Stadler, em que um clássico sofá Chesterfield parece derreter como em uma pintura de Dalí. Já a luminária Porca Miseria! (1994), do alemão Ingo Maurer, lembra uma explosão. Esses e outros tantos exemplos presentes na mostra denotam como o diálogo entre surrealismo e design prossegue. O movimento artístico que liberou o design do pós-guerra de amarras funcionalistas e despertou o olhar para as mensagens ocultas presentes nos objetos influencia até hoje muitos profissionais da área que – ainda bem – levam em conta imagens fantásticas, subversivas e baseadas na psique humana.

Cobertura do Apartamento de Carlos de Beistegui (1929-31), de Le Corbusier

EXPOSIÇÃO por Roberto Abolafio Junior | Matéria publicada na edição 113 da Revista Versatille

 

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