Perdidos na Ásia

Não há viagens sem contratempos. Roteiros à prova de falha só acontecem em publicações pagas pelo patrocinador. Isso não quer inesperados que temperam uma trajetória. As pitadas de surpresa salpicadas no caminho realçam a capacidade

Não há viagens sem contratempos. Roteiros à prova de falha só acontecem em publicações pagas pelo patrocinador. Isso não quer inesperados que temperam uma trajetória. As pitadas de surpresa salpicadas no caminho realçam a capacidade de adaptação do viajante. E são essas as memórias que ilustram as histórias para contar na volta. Quem ainda não enfrentou voos atrasados ou cancelados, malas extraviadas, destinos decepcionantes, acomodações ruins? Os episódios podem ser desagradáveis na hora, mas são pretextos para viver situações inusitadas que deixam rastro de ricos relacionamentos humanos, e que, de outra maneira, jamais seriam experimentados.

 

Tenho um exemplo pessoal: uma viagem de um mês à Tailândia, ao Camboja e ao Vietnã, onde quase tudo deu errado. Nasceu de uma escolha feita pela internet sem leitura cuidadosa do programa. Uma operadora de renome internacional oferecia um roteiro fascinante: a travessia do rio Mekong a partir da Tailândia, com visitas a cidades ribeirinhas e a capitais do Laos, do Camboja e do Vietnã durante uma quinzena.

 

Empolgados, minha mulher e eu chegamos com antecedência a Bangcoc, capital da Tailândia, onde desfrutamos dias inesquecíveis. Só na véspera do tour nos detivemos a ler o trajeto com maior atenção. Foi quando nos demos conta da roubada. O que estava ali não era uma viagem de lazer nos costumeiros padrões de conforto e segurança, mas, sim, uma verdadeira aventura na selva. Nada de errado com o tour em si, só que era inadequado ao nosso perfil. Explico. Os hotéis contratados nas cidades eram bem básicos (e quem conhece a Ásia sabe o que isso quer dizer). O tour exigia em determinadas ocasiões dormir na própria embarcação rústica ou em colchonetes no chão de escolas ou em rudimentares casas de família.

 

Avisava, também, que ficaríamos alguns dias sem banho. A alimentação precisaria ser comprada individualmente nas aldeias, a maioria pobre e em condições higiênicas precárias. A gota d’água para abortar o projeto foi a necessidade imperiosa de levar, por no máximo 15 dias, uma mochila.

 

Mas essa não foi a pior parte. Diante de um tempo inesperadamente disponível, contatamos uma grande agência local para organizar uma viagem dentro do país e aos vizinhos Camboja e Vietnã. Não foi uma decisão precipitada, mas baseada em recomendação do nosso (excelente) hotel e a boa experiência com a mesma empresa em Bangcoc.

 

O agente que nos atendeu inspirava confiança. Quase reencarnação de Buda, Jak lembrava um velho sábio oriental de filmes, com infinita capacidade de ouvir e desejo de servir. Ele entregou horas depois um pacote turístico que pareceu razoável, com as principais atrações a custos razoáveis.

 

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O prenúncio de que as coisas iam dar errado já começou no primeiro dia. O transporte terrestre entre Bangcoc e Siem Reap, no Camboja, onde estão as magníficas ruínas da arquitetura e da civilização Khmer de Angkor Wat, demorou três horas para aparecer. A van, lotada, nos levou por intermináveis quilômetros a um bar semiabandonado perto da fronteira. Lá, um funcionário cobrou “multa” que, segundo ele, seria exigida pelas autoridades cambojanas por causa da ausência de nossas fotos no formulário de imigração. Na saída da Tailândia, a van quase nos despejou com malas na rua, sob um calor infernal, e diante de uma longa fila de turistas à espera do visto de entrada. Eis que surge um agente cambojano que propõe encurtar a demora em minutos mediante uma taxa adicional.

 

Ao negarmos ser cúmplices da corrupção, pagamos com um imenso atraso. Finalmente no país tivemos que carregar a bagagem por uma rua empoeirada até um micro-ônibus para o percurso final. Quando chegamos à noite nos deparamos com uma garagem vazia no meio do nada. O motorista trancou o ônibus, apagou as luzes e foi embora, assim como os demais passageiros. Ficamos ali os dois no escuro, sem saber o que fazer. Restou-nos, estacionado por perto, um tuk tuk — espécie de moto com três rodas típica da região. A preços extorsivos o motorista nos levou embora.

 

No hotel, nova decepção. Afastado do centro, tratava-se de uma espelunca. Pior mesmo foi o café da manhã: bufê espartano servido em pratos de plástico e copos de papel. O translado aos pontos turísticos foi feito por outro tuk tuk contratado pelo pacote. O motor capenga falhava a toda hora. O simpático motorista mal arranhava o inglês, embora oferecido como guia especializado. O mesmo padrão lamentável de serviços se repetiu nos próximos dias. Desfilaram outros hotéis mal localizados e de péssimo padrão, alguns sequer com janela nos quartos. Enfrentamos situações complicadas, como uma viagem de dois dias pela baía de Halong, no Vietnã, famosa pelas cerca de três mil ilhotas de calcário que se elevam das águas, onde não faltam praias e cavernas. Ali tivemos a sorte de nossa pobre embarcação conseguir ao menos boiar. Numa discrepância com os barcos sofisticados que nos rodeavam com turistas, até a pia da nossa cabine despejava água usada nos nossos pés.

 

O venerável senhor Jak leu nossos desesperados e-mails e ouviu nossos telefonemas diários com paciência ancestral. A cada queixa respondia com o mais sincero “I am very sorry”, para, a seguir, deixar as coisas como estavam. Venceu pelo cansaço. Na volta a Bangcoc até nos reembolsou, parcialmente, pela programação original cancelada ou hotéis trocados por melhores. Num arroubo de sinceridade, confessou jamais ter pisado em qualquer dos lugares indicados, e que terceirizara o roteiro a prestadores de serviços que sequer conhecia.

 

Então a viagem foi um desastre? De jeito algum. O encanto do trajeto prevaleceu: cenários, passeios, monumentos, cultura, comida, pessoas. Por todo o percurso na Ásia vimos templos, palácios, feiras de artesanato, mercados, restaurantes, que minimizaram os acidentes de percurso. Além do citado, visitamos lugares fantásticos no Camboja, como Phnom Penh, com os resquí cios da colonização francesa, ou os trágicos campos de extermínio de Choeung Ek. No Vietnã, vivenciamos o contraste da moderna Ho Chi Minh com a charmosa capital Hanói e seu bairro antigo, que parece congelado no tempo. Atravessamos os túneis Cu Chi, abertos pelos vietcongues durante a Guerra do Vietnã. Na Tailândia, conhecemos o curioso mercado flutuante de Damnoen Saduak, a célebre Ponte do rio Kwai, e o polêmico Templo dos Tigres, entre outros. De trem noturno fomos a Chiang Mai, que transpira história, cultura e religião.

 

A cada dificuldade no caminho, aprendemos a responder com doses cavalares de bom humor e uma resiliência que não imaginávamos possuir. De certa forma, ficamos devendo favor ao senhor Jak. Ele nos deu a oportunidade de improvisar no turismo. Ao reconstruir a nossa viagem, ganhamos em todas as frentes. Trocamos hotéis ruins por ótimos. Identificamos restaurantes e roteiros que, de outra forma, passariam despercebidos. Socializamos com pessoas interessantes. Vivenciamos a genuína cultura da região. Se não fossem os problemas enfrentados, será que teríamos curtido tanto a viagem?

 

Turismo por Fabio Steinberg Especial Ásia | Matéria publicada na edição 95 da Revista Versatille

 

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