Hermerto Pascoal: música, experimentalismo e boxe com Miles Davis

Prestes a completar 83 anos, o Bruxo revela toda a magia de seus tons, de seus sons e seus dons geniais em entrevista exclusiva

Saído do interior das Alagoas com minúsculos 14 anos, Hermeto Pascoal foi parar no Recife dos anos 1950, a bordo dos Galegos do Pascoal. Já havia tempo que a dupla formada por ele e pelo irmão José Neto fazia a alegria dos arrasta-pés, se revezando no batuque do pandeiro e no fole afufado do acordeon.

 

Foi pelas mãos habilidosas de Severino Dias de Oliveira, mais conhecido por Sivuca, que eles aportaram na Rádio Jornal do Commercio, incendiando as ondas sonoras com trio O Mundo Pegando Fogo. Lá, Hermeto conheceu um talento do pandeiro afamado pelo nome Jackson. Entre um programa e outro, o Rei do Ritmo aplicou-lhe uma dica preciosa: “Ói qui, nego véi, você toca pandeiro bem demais. Mas tem que parar com isso, senão não vai pra frente. Você vai longe é na sanfona. Toma esse conselho, mas não diz que fui eu que dei, não. Senão, a gente perde o emprego…”.

 

Seguindo o toque do mestre, Hermeto foi direto para a sala do diretor artístico Amarílio Nicéias e disse que não queria mais ficar nos batuques. Levou uma invertida e recebeu uma suspensão de 15 dias. Rebateu na hora e pediu logo um mês. Foi colocado de escanteio e passou três anos na Rádio Difusora de Caruaru, onde assumiu, de vez, o acordeon. Retornou para a mesma Jornal do Commercio sob as bênçãos de Sivuca e de um talento musical fora da curva. Do teclado da sanfona para o piano, foi só uma mudança de plano, do vertical para o horizontal. A convite do violonista Heraldo do Monte, Hermeto foi teclar na boate Delfim Verde. Em 1958, partiu para João Pessoa, na Paraíba, para integrar a lendária Orquestra Tabajara. Mesmo sem saber ler partitura, se tornou o favorito do maestro Gomes. De lá, desceu para o Rio de Janeiro, ganhou o Brasil e os Estados Unidos, conquistou a Europa e o mundo.

 

Multi-instrumentista, Hermeto toca de tudo. Já tocou flauta feita de caule, piano, bacia, pífaro, saxofone e violão. Tocou com a diva Elis Regina e com os mestres Tom Jobim, Miles Davis e Ron Carter. Tocou, e ainda toca, com patos, galinhas, jumentos e leitões: “Eu tocava para eles e eles tocavam para mim. No final, eu tocava com eles”.

 

Mas, o que Hermeto, realmente, toca é a alma e a mente. O corpo e o coração. No repente das palavras, a conversa segue afiada. Vai do riso ao som, do sentimento à astúcia, num piscar da boca.

 

O verbo flui em allegro andante e começa um filme em que Miles Davis rodopia nocauteado pelos olhos do Albino Louco. Em boxe mental, vamos nos descobrindo aos poucos. Relembro o documentário Hermeto Campeão e ele fala da música feita de imagens. Pergunto sobre o repertório que se inova, a cada show, e ele conta da arte e do tempo.

 

Questiono a importância de estudar partitura e ele ensina sobre a vida. Mais que um músico com talentos excepcionais, Hermeto é uma lenda viva. Daquelas que trazem a alegria na ponta dos dedos e a sabedoria em todos os cantos dos lábios.

 

 

VERSATILLE — De Lagoa da Canoa para o jazz. Como foi essa conexão?

HERMETO PASCOAL — Essa palavra eu não conhecia, não. Eu conhecia, era, o forró, o maxixe, o xaxado… As coisas da minha terra. Só fui conhecer quando cheguei no Recife. Eu nem sabia o nome daquela música. Misturei tudo e criei a música universal. É o que sempre fiz e faço, até hoje. Até nos Estados Unidos, que é a terra do jazz, eles falam da universal music. Que é a música boa, bem tocada. Aquela que todo mundo sabe que é boa e gosta. Tanto é que, todo lugar que eu toco, os shows são, sempre, lotados.

 

VERSATILLE — Cada show seu é uma surpresa. Seu repertório está, sempre, mudando.

HERMETO — Muda sempre. Antes, mudava mais. Parei de mudar tudo o tempo todo porque a pessoa via o show, chegava em casa e dizia: “O Hermeto tocou uma música linda! Tem que ir lá ouvir”. Aí, o pessoal ia me ver e não ouvia música. Até hoje, gritam da plateia: “Toca Bebê!”. E eu digo: o bebê cresceu. “Então, toca O Ovo!”. E eu falo: o ovo quebrou! (risos). Se eu só me importasse com o sucesso, tocava Bebê em todo o show. É muito chato. Principalmente pra mim mesmo. A vida é, sempre, uma surpresa.

 

VERSATILLE — E como foi a surpresa de tocar com o Miles Davis?

HERMETO — Em 1968, fui para os Estados Unidos com o Airto Moreira e com a Flora Purim, mulher dele. Na época o Airto tocava bateria com o Miles e me chamou para ir ao show. O Airto só chegava em cima da hora, então eu fui antes. Aí, eu estava lá tranquilo, esperando, e, de repente, chegou um cara pertinho de mim dizendo: “Man… Man…” Como eu não falo nada de inglês, pensei logo que o cara era bicha. Quando o Airto chegou contei o que estava pensando e foi só risada. Aí, Airto contou para ele e a gente riu muito. O Miles Davis gostou de mim logo de cara. Mais, pelo lado espiritual. Os músicos, que tocavam com o Miles, não ficavam perto dele, não. Mas, isso não valia para mim. Porque eu sentia a alma dele. Uma alma sensacional! Ficamos logo amigos e um dia fui na casa dele mostrar minhas músicas. Ele gostou e disse que queria gravar todas. E eu disse: não. Essas vão para o disco solo que eu vou lançar já, já.

 

VERSATILLE — Foi por isso que ele quis lutar boxe com você?

HERMETO — Não foi, não. A gente já havia se tornado amigos, e, aí, um dia, ele me chamou para subir no ringue. Ele ficou olhando nos meus olhos para saber de onde ia vir meu golpe. Mas meus olhos rodam. Eu olhei pra cá, ele olhou pra lá, e eu lasquei um nocaute. No final, foi minha mão que ficou doendo (risos). Tempos depois, ele deu uma entrevista na Rádio France, e perguntaram se ele gostaria de continuar sendo músico depois que morresse. E o Miles disse: “Só se for pra ser um músico como o Albino Louco”. Era, assim, que ele me chamava. “O Albino Louco!”. Quando cheguei na Europa, todo mundo já me conhecia. Por essa história e pela luta de boxe.

 

VERSATILLE — E, também, por Igrejinha (Little Church), Selim e Nem Um Talvez, as três músicas suas que ele gravou no álbum Live-Evil, em 1971.

HERMETO — Sim, essas composições minhas já estavam tocando por lá.

 

 

VERSATILLE — Vocês fizerem os arranjos juntos?

HERMETO — Fizemos na hora, ali no estúdio, mesmo. Eu cheguei lá e eles estavam tocando. Ele e aquele guitarrista famoso, que tinha muita técnica. Só não lembro o nome…

 

VERSATILLE — John MacLaughlin.

HERMETO — Isso, ele mesmo. Foi lindo. A gente arranjou as três músicas ali na hora. Eu assobiei, eles saíram tocando, e pronto.

 

VERSATILLE — Seu primeiro disco solo foi produzido pela Flora Purim e pelo contrabaixista Ron Carter. Fale um pouco sobre ele.

HERMETO — Ele é gênio! Me convidou pra ir pra lá, para os Estados Unidos, mas, como eu não podia, o Jovino [Santos Neto, pianista que integrou o Hermeto Pascoal & Grupo] copiou as minhas coisas todas e deu para ele. Enviou, também, para o Herbie Hancock. Foi um sucesso.

 

VERSATILLE — Você está, sempre, se reinventando. Essa Big Band que você está fazendo agora, por exemplo, é novidade absoluta. Ganhou até o Grammy.

HERMETO — É uma turma nova aqui do Brasil, que me surpreendeu muito. Eu não ganhei o prêmio como músico solista, mas, deveria ter ganho, também. Eu tinha show no dia, então, nem fui lá receber. Quem recebeu foi o Tiago Gomes [pianista da Big Band]. Mas, não fiquei triste, não. Eles merecem. São todos músicos muito bons. Depois, o pessoal do Grammy manda um prêmio para mim, também. Deve chegar aí uma cesta cheia de bananas! (risos)

 

 

VERSATILLE — O que a abertura da Blue Note, aqui em São Paulo, representa para você?

HERMETO — Representa esperança. Lá, nos Estados Unidos, já é uma casa conceituada. Não toca coisa ruim, não. É esse cuidado que eles têm que ter aqui. Por isso, os patrocinadores têm de dar uma força. Quem gosta de música boa, vem. Quem não gosta, vai embora ou nem precisa vir. Porque dinheiro para patrocinar coisa ruim é amaldiçoado. O maior sarro que você pode tirar do dinheiro é você ganhá-lo fazendo o que gosta. Não pode deixar ele ganhar você. Se fizer coisas que não gosta para ganhar dinheiro… Aí, é o dinheiro que ri da gente.

 

VERSATILLE — Você, sempre, foi autodidata. Criou milhares de composições e inventou instrumentos nada convencionais. Como é seu processo criativo?

HERMETO — Eu deduzo tudo. Deixo fluir. Para mim tudo é som. Vou fazer uma exposição com os instrumentos exóticos que eu uso. A música exótica para mim é o equivalente ao abstrato na pintura: quanto menos você souber dizer o que é, mais sentimento tem.

 

VERSATILLE — Lembro de uma cena de Hermeto Campeão [documentário que o Thomas Farkas fez, em 1981], em que, você estava no piano, explicando como compõe. Aí, você desenhou umas montanhas e, de repente, desenhou um sol. Aquilo foi sensacional.

HERMETO — Fiz aquilo para as crianças e para todo mundo ver que dá para fazer música sem saber teoria. Quando eu era o pianista da Orquestra Tabajara, todo mundo, ali, sabia ler partitura. Mas o maestro chegava pertinho de mim e dizia que gostava mais de me ver tocando. Ele só não falava para todo mundo, para que o pessoal não ficasse chateado. Aí, na hora do meu solo, ele dizia: “Tem uma velha chata, aí, que é a dona da orquestra”. E quando ela passava, o maestro ficava na frente do piano para ela não ver que eu estava tocando sem seguir a partitura.

 

VERSATILLE — Mas, para ser músico, estudar faz falta?

HERMETO — Pra mim, não fez, não. Porque eu nunca quis ser músico desses que toca tudo igual, sempre. A gente tem de gostar do que faz e se dedicar. Você vê o jogador de futebol que é milionário. Aí ele quebra o dedinho do pé e não pode jogar. O dinheiro que ele tem não vai jogar por ele. Eu digo para todo mundo: não coloca seu filho para estudar música logo cedo. Espera chegar lá pelos 12 anos, que, aí, a pessoa já sabe se gosta, mesmo, daquilo. Compra o instrumento que ele quiser e incentiva ele a tocar com amor, do jeito dele. Aí, se ele tocar de um jeito apaixonado, depois, chama o professor para ensinar teoria. Teoria todo mundo pode aprender. Mesmo que não tenha musicalidade. Mas, aí fica sem coração. E sem o dedinho do pé. O que é pior ainda. (risos)

 

 

 

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.