Entenda o que levou à grandeza da juíza Ruth Bader Ginsburg
RBG fez história por sua atuação em casos de discriminação de gênero e se tornou uma referência para liberais
Ícone pop, ícone da luta pelo direito das mulheres, segunda mulher na Suprema Corte americana, heroína local, Notorius R.B.G. Esses são alguns dos adjetivos atribuídos à juíza Ruth Bader Ginsburg, que morreu em setembro passado, aos 87 anos, vítima de câncer. RBG, como ficou popularmente conhecida, fez história por sua atuação em casos de discriminação de gênero, por colocar as mulheres no mesmo lugar que os homens, trazendo uma mudança muito significativa na promoção de uma sociedade americana mais igualitária. Tornou-se ainda uma referência para liberais por seu trabalho, de longos 27 anos, na mais importante Corte dos EUA. Sua história inspiradora é contada em livros, filmes e documentários, e sua imagem, popularizada no país e fora dele, é estampada em camisetas, tatuagens, canecas e outros itens da cultura pop.
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Joan Ruth Bader nasceu no Brooklyn, em Nova York, em 1933, filha de pais imigrantes judeus. Na adolescência, sua mãe enfrentou uma batalha contra o câncer, mas morreu quando Ruth tinha 17 anos, na véspera de sua formatura. Mesmo com essa perda prematura, a figura materna foi uma importante influência na formação de sua personalidade. Em diversos depoimentos, a juíza traz em sua fala os conselhos e orientações da mãe, que levou para a vida. “Havia duas lições que ela sempre repetia: seja uma dama e seja independente. Ser uma dama significa não ser vencida por emoções inúteis, como a ira. E ser independente significava que não haveria problema em conhecer o príncipe encantado, e ser feliz para sempre, desde que eu fosse capaz de me virar sozinha”, disse Ruth em depoimento no documentário A Juíza, dirigido por Julie Cohen e Betsy West.
Ruth parece ter levado o conselho à risca. Conheceu seu “príncipe encantado” ao mesmo tempo que fez uma trajetória brilhante na carreira. Depois de se formar na Universidade de Cornell em 1954, casou-se com Marty Ginsburg, de quem adotou o sobrenome e foi companheira até sua morte, em 2010. Pouco depois do casamento, teve seu primeiro filho.
Talvez os contornos de heroína na provocação de mudanças importantes em direção à maior igualdade de gêneros tenham começado a tomar forma nesse período, tendo ela mesma sofrido episódios de discriminação de gênero. Na gravidez, teve seu salário reduzido quando trabalhava em um escritório de assistência social. Nessa época, nos anos 1950, a discriminação contra mulheres grávidas ainda era legal.
Em 1956, ingressou no curso de direito da Universidade Harvard, e lá enfrentou um ambiente predominantemente masculino e hostil a mulheres: eram nove alunas no meio de uma turma de 500 estudantes. O reitor as recebeu, à época, questionando como se sentiam ao tomar o lugar de homens na universidade.
Ginsburg precisou transferir o curso para a Escola de Direito de Columbia, em Nova York. Formou-se em direito e também sentiu na pele a discriminação ao buscar uma colocação no mercado. Nenhum escritório de advocacia a contratou simplesmente pelo fato de ser mulher. “Eu me tornei advogada em uma época em que as mulheres não eram bem recebidas pela maioria dos operadores do direito, mas Marty me apoiou nessa decisão de forma irrestrita”, disse em depoimento.
Em 1963, foi lecionar na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, e ministrou algumas das primeiras aulas de mulheres e de direito. Também foi cofundadora do Projeto dos Direitos das Mulheres na União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu).
Começou, então, um período muito frutífero de sua atuação em casos de discriminação de gênero, entre eles seis que a levaram diante da Suprema Corte dos Estados Unidos, ganhando cinco. Uma das linhas de sua estratégia consistia em usar as decisões contra a segregação racial para mostrar que a jurisprudência dizia que todos devem ter os mesmos direitos perante a lei, princípio consagrado na Constituição dos Estados Unidos que não se aplicava às mulheres na época.
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Mais do que isso, fez os magistrados verem que a discriminação de gênero prejudicava igualmente homens e mulheres. O filme Suprema, inspirado em sua história e protagonizado por Felicity Jones, retrata um desses casos. O processo envolvia Charles Moritz, que teve uma dedução fiscal negada por ser um cuidador do sexo masculino. O argumento de defesa mostrava que a recusa representava uma discriminação com base no gênero.
Na década de 1980, um novo capítulo começou em sua vida, quando deixou a profissão de advogada ao ser nomeada pelo então presidente dos EUA Jimmy Carter para o Tribunal de Apelações. E, em 1993, com 60 anos de idade, Bill Clinton a nomeou para a Suprema Corte, sendo a segunda mulher indicada à função, depois de Sandra Day O’Connor.
Suprema Corte
No início, Ginsburg era de centro-esquerda no espectro político. Mas, conforme a Suprema Corte foi se tornando mais conservadora, passou a incorporar visões mais progressistas, sendo históricos seus debates e divergências com os demais juízes. Inclusive, tinha um famoso “colarinho da divergência”, que usava nessas ocasiões, sobre a toga. Suas opiniões foram ganhando cada vez mais notoriedade, chamando atenção dos mais jovens, o que a catapultou como ícone pop e fenômeno da Internet – como a conta no Tumblr dedicada a ela chamada Notorious R.B.G., em referência a The Notorious B.I.G., já falecido.
“Às vezes, as pessoas me perguntam quando será suficiente. Quando haverá mulheres suficientes na Suprema Corte? E minha resposta é ‘quando houver nove’. As pessoas ficam chocadas. Mas houve nove homens e ninguém nunca levantou uma questão sobre isso”, disse em palestra na Universidade Georgetown, em Washington, em 2015.
Despedida
RBG superou um câncer de cólon em 1999, outro uma década depois e, em 2018, precisou tirar nódulos malignos do pulmão esquerdo. No ano passado, a doença reapareceu no pâncreas, levando sua vida em setembro último.
Quando perguntada em entrevista à MSNBC, em 2015, de como gostaria de ser lembrada, disse: como “alguém que usou o talento que tinha para fazer seu trabalho da melhor forma possível. E ajudar a reparar falhas na sociedade, fazer as coisas um pouco melhor com a habilidade que tem”. E como fez.
Por Estefânia Basso