Conhecido por clássicos como Jurassic Park, agora Spielberg chega aos cinemas com uma “semibiografia”
O diretor mítico lança o longa The Fabelmans, inspirado na própria história de vida
Entender como se formam os gênios é algo que sempre fascinou o ser humano. É natural tentar compreender o funcionamento da cabeça dessas pessoas, quais são as experiências que as tornaram assim, ou se é algo de nascença. No entanto, é praticamente impossível apontar o que torna alguém um ponto fora da curva. Por mais que se estude e pesquise, o único resultado que temos é uma história extraordinária que vale a pena ser contada. E esse é o caso de The Fabelmans (Os Fabelmans, em tradução livre).
O filme, que se passa nos anos 1960, é aparentemente sobre a vida de Sammy, um jovem que aos poucos vai descobrindo no cinema uma forma de lidar com seus problemas da adolescência, bem como as complicações do relacionamento com sua família e colegas de escola. Até passaria batido, se não fosse pelo fato de o garoto ser Steven Spielberg, apenas com outro nome para disfarçar que o projeto é uma “semibiografia” – termo usado pelo próprio diretor para descrever o filme durante sua participação no Toronto International Film Festival.
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Spielberg é incontestavelmente um dos maiores diretores de cinema da história, além de ser uma das figuras mais queridas da indústria, e um projeto autobiográfico sempre foi de interesse do público. Afinal, como resistir à curiosidade de saber o que se passa dentro da cabeça de alguém que trouxe à telona os clássicos E.T. – O Extraterrestre e Jurassic Park? No entanto, a ideia de expor sua vida pessoal nunca o tinha atraído o suficiente.
Havia outros projetos que lhe pareciam mais interessantes e que talvez tomassem menos tempo. Até que, durante a pandemia, Spielberg se viu trancado em casa, como conta em coletiva de imprensa, e pensou: “O meu trabalho é estar com pessoas e interagir com elas e, do nada, eu… graças a Deus muitos dos filhos voltaram para casa e nós vivemos juntos, embaixo do mesmo teto, por um tempo. Mas a outra coisa que eu fazia não existia mais”, e complementa: Fiquei pensando: o que será que isso tudo vai significar para a humanidade? Se eu for contar uma história que sempre quis contar, sobre crescer em uma família peculiar, com um pai e uma mãe sem iguais, este seja talvez o melhor momento. E agora tenho o tempo para isso”.
O diretor juntou forças com o dramaturgo Tony Kushner, seu parceiro também nos longas Munique e Lincoln e na recente produção de Amor Sublime Amor. Os dois escreveram o roteiro juntos através de videoconferência, durante o lockdown. “Eu decidi que precisava fazer isso, e Tony foi certamente o meu terapeuta-conselheiro para tirar essas histórias de mim”, lembra o diretor. “Eu achei que seria muito mais fácil do que foi. Conheço esse material e os personagens durante minha vida toda. E, no entanto, para mim foi uma experiência muito assustadora, porque eu estava tentando, de forma semiautobiográfica, recriar grandes lembranças, não apenas em minha vida, mas na vida de minhas três irmãs e da minha mãe e do meu pai, que não estão mais conosco. A responsabilidade disso começou a pesar.”
Como bom cineasta, para desenvolver todos os personagens da trama, ele precisou também compreender o ponto de vista dos outros membros da família sobre a convivência com ele. “Eu queria que a história refletisse a minha experiência de crescer com minhas irmãs, quem eram elas e como foi a vida delas crescendo comigo”, conta Spielberg. A busca por retratar suas memórias da forma mais honesta possível acabou facilitando uma reaproximação de Spielberg com as irmãs, e hoje ele conclui: “Não estou dizendo que todas as minhas memórias são 100% corretas, mas é o melhor que eu consigo lembrar”.
Um dos pontos centrais da narrativa foi o processo de divórcio de seus pais e as consequências disso na vida da família e na de Sammy/Steve, um dos momentos mais dolorosos para o diretor. “O divórcio é algo que traumatiza você. E eu tentei contar a história da separação dos meus pais quando fiz E.T. Havia escrito algumas páginas sobre o divórcio, mas acabei me empolgando, porque coloquei algo entre mim e a realidade. Coloquei um estranho entre mim e a realidade do divórcio e pontuei isso.” E, como em uma autobiografia, similaridades não são apenas meras coincidências. Sammy também recorre a uma câmera de vídeo para lidar com seus medos e frustrações. Ao capturar a imagem, ele consegue ter o controle da situação que o machuca e assusta.
Ironicamente, para Spielberg, esse foi um dos pontos mais desafiadores nas gravações do filme. Ao contar a própria história, não havia separação estética entre ele como diretor e a experiência vivida em cena. “Eu não ia poder colocar uma câmera, do jeito que Sammy faz, entre ele e as coisas horrivelmente realísticas que estão acontecendo com ele. E eu sempre consegui colocar uma câmera entre mim e a realidade, só para me proteger. Mas não consegui enquanto contava essa história. Como o elenco sabe, essa foi uma experiência emocionalmente muito difícil. Não toda, mas parte dela foi muito, muito difícil de passar.” Por outro lado, retratar sua adolescência também permitiu que o diretor revisitasse algumas de muitas memórias que modelaram sua vida profissional, como a primeira vez que foi levado ao cinema, as primeiras câmeras e muitas de suas lendárias produções amadoras, como Escape to Nowhere, um filme de guerra de 40 minutos que Spielberg mostrou ao elenco no set de O Resgate do Soldado Ryan.
“Foi uma alegria poder recriar esses filmes. Fiz muitos filmes quando era criança, em 8 milímetros, o que era raro naquela época. Poucos sabiam filmar em superoito. Era físico, era uma arte manual. Não tinha esses editores digitais. Você precisava sentar lá com um splicer (ferramenta manual de edição de filme), aí tinha que raspar a emulsão do filme para obter a vedação. Quando você punha o filme, você literalmente colocava cola no filme. Sinto falta disso. Eu fui a última pessoa a cortar em película em Hollywood. A última pessoa a realmente usar a química nos carretéis de filme. Sinto falta da evolução. Claro que a era digital é boa. Todos trabalhamos e nos beneficiamos, mas sinto falta do cheiro do celuloide e de cortar o filme com as minhas mãos”, explica.
E, por falar em edição, na última hora antes de levar o filme para o público, Spielberg decidiu deixar uma cena de fora. Para finalizar a história e mostrar que Sammy é de fato Steve, o próprio diretor apareceria dos bastidores dando a ordem “corta”, mas ele explica: “Eu absolutamente não estava pronto para quebrar aquela parede. Não queria quebrar a quarta parede. Então me cortei do filme. Foi uma escolha boa, foi a escolha certa”. Ao acabar sua biografia cinematográfica, Spielberg conta como foi, em tom descontraído: “Respirei fundo, com uma sensação de alívio. Então disse para mim mesmo: ótimo, agora não vou precisar mais escrever aquele livro”.
Por Miriam Spritzer | Matéria publicada na edição 128 da Versatille