Conheça a trajetória da artista Rejane Cantoni
Sua extensa carreira inclui mostras ao redor do mundo e sempre um pioneirismo nato, além da sede incansável por estudos e reinvenção
Algumas conversas nos levam a lugares até então desconhecidos, caso da ligação com Rejane Cantoni, artista e pesquisadora de sistemas de informações. Suas obras, expostas mundialmente, discorrem sobre a interação entre homens e máquinas, sob diferentes percepções a respeito do espaço, de forma que o público não apenas é espectador, mas sim um agente ativo, que modifica e constrói a obra. Após trafegar por diferentes meios, sempre ligados à imagem, Rejane chegou recentemente, representada pela Metaverse Agency, ao universo do NFT (non-fungible token art), que são criptoativos colecionáveis exclusivos que existem desde 2012 e que explodiram em 2021 (com 55% mais de vendas comparado a 2020).
LEIA MAIS:
- SP-Arte estreia em modelo híbrido e tem destaque tecnológico
- Conheça Hanayrá Negreiros, nova curadora-adjunta de moda do Masp
- Bulgari convida artistas a criar interpretações de “metamorfose”
Sua extensa carreira inclui mostras ao redor do mundo e sempre um pioneirismo nato, além da sede incansável por estudos e reinvenção: “Eu adoro quando é um projeto de pesquisa que me questiona, isso é o comum, cada passo gera o próximo. Eu não tenho obra, eu tenho processo, ideia em movimento, explica Rejane Cantoni. Confira a entrevista na íntegra.
Versatille: Como foi o processo de se descobrir artista?
Rejane Cantoni: Eu estudei jornalismo e notei, no primeiro ano, que pensava por imagens. A história, para mim, vinha como se fosse um objeto, então contar histórias era transformar em algo linear. Eu percebi fazendo um trabalho de conclusão de curso, no qual usei uma câmera superoito. Passei o resto do jornalismo pensando em realizar filmes e estudar cinema. Depois, no mestrado da PUC em semiótica, comecei a estudar o Mondrian, eu estava preparando um seminário. Peguei os livros, fiz imagens, os slides da obra completa do Mondrian e fiquei cronologicamente olhando essas imagens. Percebi que tinha uma construção gramatical, do primeiro quadro ao último, era uma gramática. Quando fui filmar, reparei que as obras do Mondrian eram retas, e eu precisava de um instrumento que fosse reto. Uma amiga tinha um amigo, que comprou um computador 286, e ele estava treinando uma pessoa para operar essa máquina. E aí, durante as horas de treinamento, ele me permitiu ir lá e montar as imagens. Eu fiz isso de madrugada, e, na hora de exibir, levei o computador para a PUC. Foi incrível pois, na hora que apresentei, eu me lembro das pessoas falarem: “É isso, nós entendemos”. Foi genial, e foi a primeira vez que eu tive uma ideia na minha cabeça e executei em uma máquina, tal qual a ideia da cabeça. Pela primeira vez o filme que rodava na minha cabeça era o que rodava na tela. Isso me jogou para dentro da pesquisa em computação gráfica.
V: Quais fatos se desencadearam a partir do “mergulho” na computação gráfica?
RC: Eu pensei: “Eu preciso ser MacGyver, eu preciso entender de tecnologia. Saquei que a linguagem do meio impregnava a minha mensagem, o meu conteúdo. Então eu precisava usar outro meio, e o computador me parecia o meio adequado. Na época, então morando na Suíça, entrei em um projeto que simulava um desfile. Isso foi incrível, mas eu percebi que simulação não era o que eu queria, eu não estava lá para simular o mundo físico, eu queria que a Naomi Campbell, a Marilyn Monroe andassem em cima de dois dedos. Eu queria ser artista, criar o meu próprio mundo, e foi aí que eu percebi que, diferente do cinema, ela tem tridimensionalidade. Eu posso entrar na imagem, eu posso manipular essa imagem, e isso me levou para uma pesquisa em computação gráfica e doutorado com o assunto realidade virtual. Mudo então de ferramenta para a realidade virtual, e agora o corpo tem de ser integrado, sou eu agora, agindo no espaço.
V: Quais são suas obras mais marcantes?
RC: Quando voltei para o Brasil, em 1997, fui convidada para um evento do Itaú Cultural, e eu bolei um quadro interativo, a obra Mona-Visa, posicionada fora da exposição. Na verdade, para mim, a maneira como vemos o quadro Mona Lisa já está traduzida na história da arte, pois o Leonardo da Vinci fez o quadro com perspectiva aérea, pela primeira vez, o que significa que o que está atrás está fora de foco, que é como nós vemos. Na minha obra, a Mona Lisa é um pôster por cima de um mecanismo robótico, de forma que o quadro sai da parede e acompanha você. No mesmo ano, comecei a desenvolver junto com a Daniela Kutschat o projeto OP_ERA, que foi um sucesso extraordinário. Ele começou a ser imaginado em 1997, e a primeira implementação ocorreu em 2000, 2001. Fizemos um espetáculo no palco do CCBB do Rio de Janeiro. Quando vimos que deu certo, aplicamos para o prêmio Transmídia, ganhamos e aí fizemos uma versão para a caverna de realidade virtual, um projeto da USP.
V: O que veio na sequência?
RC: Eu e a Dani percebemos que não podíamos contar com os laboratórios, eles precisavam ser ambulantes. As pessoas não têm de ir para a obra, ela tem de estar onde as pessoas estão. O OP_ERA teve inúmeras apresentações, viajou o mundo inteiro, principalmente a versão Sonic Dimension, que foi comprada pelo museu alemão ZKM, o principal na área de arte e tecnologia do mundo, e uma versão igual foi comprada pelo Itaú Cultural. A obra foi realizada com dinheiro de prêmio. Foi aí que eu conheci o Leo Crescenti, e a gente começou a namorar, acabamos vivendo juntos, e ele era um cara que era fotógrafo e diretor de fotografia, ele viajou comigo para o México, e, nessa história, ele começou a se animar. Nosso primeiro projeto foi concebido em 2005, implementado em 2007, a obra Infinito ao Cubo. Eu tive de romper algo para fazer uma coisa nova com o Leonardo. Eu não estava mudando de parceiro, estava mudando de pesquisa. Na época eu estava fazendo um pós-doutorado, a ideia do cinema do futuro, e foi muito simples imaginar o nosso elo, que era o cinema. O Infinito ao Cubo nasceu da especulação de um novo formato de tela para o cinema. A gente sabia que, para contar novas histórias, era necessário ter novos meios.
V: Como foi o começo do NFT?
RC: Eu fui convidada para fazer um trabalho para um shopping center, o CJ Shops. A Fernanda Vidigal, a curadora, tinha uma proposta, que era natureza e tecnologia. Fato paralelo: dois anos atrás, uma amiga minha, a Kendall Orson, me ligou querendo saber o que eu pensava de NFT, ela trabalhava em uma galeria em Milão, e estava saindo desse trabalho e criando um espaço que funcionava longe do espaço mercantilista. O que eu vi, naquele momento, era um projeto de arte, de imagens que pareciam muito com o começo da computação gráfica, coisas que eu já tinha visto, não parecia muito inovador. Quando comecei a pesquisar, entendi o que o NFT representa. O seu alicerce é uma nova tecnologia, de troca, que é o Blockchain. Quando comecei a estudar, fiquei absolutamente chocada com as possibilidades, achei sensacional e acessível a todos.
V: Fale mais sobre a instalação Floras, que tem uma parte estampada na capa.
RC: Quando pensei na instalação Floras, ela contém objetos, que são NFTs. Eles podem ser comercializados, como se eu tivesse uma vitrine no shopping center, e cada um que comprar um vídeo passa a ser meu parceiro. Quando você compra um NFT, eu sou obrigada a gerar um novo, que será feito a partir da escolha das pessoas. A obra, no futuro, passa a ser construída pelas pessoas e pelo sistema computacional. Hoje, aqueles vídeos foram criados gerando feedback e loop de vídeo. Eu já faço isso há muito tempo. Começo o projeto com uma tecnologia analógica, e, conforme as pessoas vão tomando parte nisso, ele vai se construindo sozinho. É uma instalação evolutiva, pode ter vários formatos. São 50 vídeos multiplicados por 4, ou seja, 200, que interpretam a sua posição no espaço e se deslocam conforme a diferença. Eles fazem uma fusão, geram um novo, e repensam a sua posição o tempo inteiro, um cinema acontecendo. Eu adoro quando é um projeto de pesquisa que me questiona, isso é o comum, cada passo gera o próximo. Eu não tenho obra, eu tenho processo, ideia em movimento. No próximo 1 de dezembro, inauguro exposição da Floras no CCBB do Rio de Janeiro.
LEIA MAIS:
- Afonso Cruz fala sobre seu livro “Vamos Comprar um Poeta”
- NFT movimenta o mercado artístico e traz novos olhares para a arte
- Makoto Azuma: o artista que fotografa flores no espaço
V: Já existe a compreensão do público sobre o NFT?
RC: É uma obra mais intelectual, que exige um pouco mais de compreensão. Sou eu convidando você para um jogo, você tem de ser iniciado, e no Floras eu convido você a comprar um NFT, é um treino que você precisa e que eu preciso, para entender o que é Blockchain. Isso é um exercício. É uma obra feita de cotas. A melhor forma de descrever para você essa interação é o exercício do jogo, que é ilusão e não, pois na verdade você estará operando uma moeda que tem o valor real.
Por Giulianna Iodice | Matéria pulicada na edição 122 da Versatille