Como o mezcal, bebida que vem aos poucos ganhando reconhecimento, é produzido

Por muito tempo associado à bebida de baixa qualidade, o destilado do agave teve sua produção profissionalizada nos últimos 50 anos

Foto: Getty Image

Ainda lembro com clareza a primeira vez que tomei mezcal. Era 2017, e meu então colega de trabalho, Eduardo Ortiz, nascido e criado em Oaxaca, me serviu uma dose do destilado de agave para relaxarmos após mais um dia de expediente no restaurante Cosme, em Nova York, onde nos conhecemos. 

 

À época, acostumada às tequilas tomadas no Brasil em shots temperados com limão e sal, não tive dúvidas: verti o líquido transparente na boca de uma só vez e senti a bebida com graduação alcoólica acima dos 40 graus bater no corpo. Mas maior impacto teve Eduardo, que não se conformou por eu ter perdido a chance de conhecer toda a complexidade do mezcal, saboreando-o em pequenos goles. 

 

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Por muito tempo associado erroneamente à bebida de baixa qualidade, para se embebedar, o mezcal vem aos poucos ganhando o reconhecimento que merece. Principalmente pela profissionalização da produção nos últimos 50 anos e o crescente interesse do público dentro e fora do país. Intrinsecamente relacionado à cultura mexicana e suas raízes ancestrais, o mezcal sempre esteve presente na história da região. Vestígios de milho mastigado e maguey (planta suculenta do gênero agave, da família das Agavaceae) encontrados dentro de uma caverna com pinturas pré-históricas em Caballito Blanco, na região de Oaxaca, indicam que a produção da bebida, então considerada vinho sagrado para os guerreiros astecas e ligada a celebrações religiosas e rituais transcendentais, remonta a mais de 12 mil anos. 

 

Manteve-se até este século principalmente graças a fabricações caseiras feitas de forma clandestina por famílias menos favorecidas desde 1785, quando a produção de destilados de agave no país chegou a ser proibida por decreto. 

 

Agave (Luana Sabino)

 

Com nove regiões de Denominação de Origem estabelecidas desde 1997 Oaxaca, Puebla, Guerrero, San Luis Potosí, Zacatecas, Durango, Michoacán, Tamaulipas e Guanajuato –, o ciclo de produção do mezcal exige paciência e conhecimento para assegurar qualidade. Diferentemente da tequila, que é feita exclusivamente com agave azul, diversas variedades de maguey, entre as mais de 150 existentes, podem ser utilizadas em sua produção. Assim, de certa forma, toda tequila pode ser considerada mezcal, mas o contrário não é válido. 

 

As variedades mais comuns são a espadín, mexicano, arroqueño e tepeztate que, como acontece com as cepas de uvas, aportam características próprias à bebida cujo ciclo de produção pode levar de oito a 30 anos, tempo necessário para a planta chegar ao ponto de maturação ideal. Daí o mezcal ser tomado com muito respeito. 

 

Colhido o agave, suas folhas são descartadas, e apenas a pinha é cozida de três a cinco dias, para que os amidos concentrados na planta se transformem em açúcares. Cortadas, trituradas e lavadas, as pinhas cozidas são prensadas, e seu suco é levado a tinas de madeira com pele animal para que fermente e as leveduras convertam os açúcares naturais em álcool. A destilação finaliza o processo antes do envase e da distribuição da bebida ainda jovem. A forma e os equipamentos utilizados nesse ciclo forno escavado na terra ou “pit” para o cozimento, força humana ou tração animal para a moenda, panela de barro, cobre ou inox para a destilação determinarão a classificação da bebida como ancestral (quando se segue os métodos mais tradicionais), artesanal ou industrial, características que normalmente poderão ser conferidas nos rótulos, muitas vezes preenchido à mão, com a tiragem daquela produção. 

 

Os sabores e aromas de cada mezcal dependerão de inúmeros fatores, como a variedade da planta, o microclima e solo em que se desenvolveu, o ponto de maturação em que foi colhida, o tempo de fermentação, as técnicas de destilação aplicadas e a própria mão do mestre mezcalero. Todos eles gerarão bebidas diferentes, com aroma e sabor que podem ir de notas florais a terrosas, da acidez das frutas tropicais verdes à picância da pimenta-do-reino, com mais ou menos corpo –, novamente, como acontece no vinho. Curiosamente, o toque defumado que se acostumou a entender como característica típica do mezcal na verdade se trata de um defeito e aroma indesejado em um mezcal de alto nível, pois revela um tratamento pouco zeloso com as pinhas na hora da cocção. Assim como a adição do gusano, historicamente acrescentado às garrafas para trazer mais sabor a bebidas de baixa qualidade.  

 

Mezcal Acrisolado, feito com Maguey Cuishe e produzico com a técnica Capón (Luana Sabino)

 

Um dos maiores prazeres que tenho a cada nova visita ao México é descobrir novos palenques (nome dado às destilarias) e sempre que possível conhecer de perto suas estruturas, na maior parte das vezes voltadas a produções limitadas e, por isso, pouco conhecidas fora do país. Daí o grande orgulho que temos da coleção de mezcal que reunimos no Metzi, nosso restaurante em São Paulo, e que dividimos com os clientes. 

 

Entre as marcas que aprecio mais estão a Real Minero, uma das mais tradicionais na produção de mezcal de alta qualidade, em Santa Catarina Minas (Oaxaca), a LaLocura, criada em 2014 por Eduardo “Lalo” Ángeles, quarta geração de master mezcaleros da família fundadora da Real Minero, e o Acrisolado, algumas delas com bebidas tão especiais que merecem estar entre as melhores do mundo. 

 

Por Luana Sabino | Matéria publicada na edição 134 da Versatille