Ana Roš: gastronomia da Eslovênia para o mundo

Comandado por uma aspirante a diplomata, o Hiša Franko tornou-se o motivo que faz amantes da boa gastronomia visitarem a Eslovênia. E fez de sua chef, Ana Roš, uma representante internacional da boa mesa

Vinte anos atrás, a eslovena Ana Roš mal sabia cozinhar. Fazia só um macarrão básico, nada de excepcional. Era uma jovem talhada para se tornar diplomata, e não cuidar de panelas. Tinha 26 anos, já dominava cinco idiomas, havia acabado de terminar a faculdade de relações internacionais em Trieste, na Itália, e avaliava uma proposta para trabalhar em Bruxelas, na Bélgica. Foi quando encontrou uma nova receita para sua vida. Ana Roš tornou-se a mais famosa chef de cozinha da Eslovênia.

 

 

Em 2017, foi reconhecida pela revista Restaurant como a melhor chef mulher do mundo. Seu restaurante figura entre os melhores do planeta, segundo a publicação, há três anos – atualmente, ocupa a 38ª posição. Sua fama atrai olhares e estômagos de toda a parte. Ela não se tornou embaixadora, mas divulga o país como nunca.

 

“Quando decidi deixar a carreira diplomática para me dedicar em tempo integral à cozinha, foi um choque para muita gente ao meu redor”, diz ela.

 

 

Principalmente para seus pais, que custaram a aceitar a surpreendente vocação da filha. Mas essa é uma história com diversos ingredientes típicos. Antes de enveredar pela gastronomia, Ana estava noiva de Valter Kramar, cuja família tinha um pequeno restaurante. Aos 32 anos, ele era um faz-tudo do estabelecimento, mas nutria profundo interesse por enologia, graduado que era pela prestigiada Associazione Italiana Sommelier. Os pais de Kramar já vinham pensando em se aposentar. Decidiram passar o negócio ao filho. “Era óbvio que ele iria assumir o restaurante. Então eu decidi arriscar tudo e me tornar chef. Naquele momento, tinha a oportunidade de trabalhar na área diplomática em Bruxelas”, relembra Ana. “Mas abdiquei de tudo pelo Valter e por nosso relacionamento.”

 

 

Hiša Franko era uma típica gostilna – como são chamados os restaurantes eslovenos simples, para refeições do dia a dia – na zona rural de Kobarid, cidadela de 4 mil habitantes às margens do Rio Soča, azul-turquesa, uma das mais estonteantes belezas naturais da Eslovênia. Ali o cardápio era básico, mas o estabelecimento gozava de boa fama na região. E só.

 

 

Ana não sabia muito bem por onde começar. Tinha repertório: filha de um médico e de uma jornalista, havia viajado muito com os pais. Cultivava uma boa sensibilidade para aromas e sabores. Ao mesmo tempo, contava com a intuição de que era preciso mergulhar nas tradições locais para criar uma cozinha autêntica. “Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia”, já dizia o escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910).

 

O estalo veio quando ela foi com o marido jantar no restaurante italiano La Subida, laureado com uma estrela Michelin, localizado em Cormons, perto de Udine, quase na fronteira com a Eslovênia. “Aquela cozinha inspirada abriu meus olhos”, conta ela. Decidiu então se aprofundar nos ingredientes regionais. Por que não utilizar o famoso queijo de leite cru produzido na cidade de Tolmin como recheio de suas massas frescas? E os peixes, entre eles a rara truta-mármore, que abundam no Soča? Os cabritos e carneiros que pastam nas montanhas? Será que os ursos das florestas eslovenas também não renderiam um bom prato?

 

No início, o casal ainda mantinha como funcionário um antigo chef de cozinha, habituado ao arroz e feijão – ou melhor, à klobasa com kislo zelje, ou salsichão com chucrute típico do país. Ele era um bocado resistente às invencionices de Ana, mesmo quando ela teimava em apenas experimentar um tempero novo, adicionando ao prato uma ou outra erva que havia descoberto.

 

 

Autodidata e obstinada, Ana foi testando e testando. Até que, aos poucos, conquistou seu lugar na cozinha. Entre o rio azulzinho, as montanhas e a pequenez do território esloveno, a jovem chef fez o próprio terroir. “Quis expressar as estações, a localidade, minha personalidade, minhas viagens e minha feminilidade por meio da comida, por isso trabalhei duro explorando técnicas e sabores a partir de experimentações e lendo livros, até que encontrei meu método”, avalia. “Costumo dizer que queria que minhas mãos pudessem refletir o que estava em minha cabeça.”

 

“No início, eu era completamente autodidata, usando meu talento para combinar sabores e aprendendo com os conhecimentos de minha sogra sobre pães, carnes e massas”, prossegue. “Depois de alguns anos, tive a chance de me aproximar e me tornar amiga de alguns dos mais famosos chefs do mundo, e eles me deram grandes conselhos e dicas que ajudaram a desenvolver minha cozinha.”

 

Se a primeira década do século 21 foi de desenvolvimento interior do Hiša Franko, na segunda foi quando o restaurante se tornou conhecido pelo mundo. Madura, Ana foi descoberta pelo circuito internacional da boa mesa. Em 2012, foi a primeira chef mulher convidada para participar de um projeto chamado Cook It Raw. Pronto: a eslovena estava no seleto clube que já congregava mestres como o dinamarquês Rene Redzepi, o francês Iñaki Aizapitare, o americano Daniel Petterson e o brasileiro Alex Atala.

 

 

Três anos mais tarde, a chef foi reconhecida como o “talento do ano” pela associação Jeunes Restaurateurs d’Europe (JRE). Na mesma época. acabou sendo protagonista de um documentário produzido pela Netflix, episódio da segunda temporada da série Chef’s Table. “Nos meses seguintes à exibição, as reservas não paravam de ser feitas”, conta. “Em pouco tempo, os americanos se tornaram nossos clientes número 1 e, até agora, os efeitos de aparecer na plataforma de streaming ainda são muito grandes.”

 

 

Ana havia conseguido a proeza: era sucesso de crítica e de público. Tanto que acabou sendo agraciada pelo governo da Eslovênia com uma comenda reservada àqueles que notoriamente servem de inspiração para os conterrâneos. Em seguida, nova premiação: a Associação Eslovena de Jornalistas de Turismo reconheceu publicamente o Hiša Franko como a instituição que mais contribuía para o interesse estrangeiro sobre o país. Quem diria que Ana Roš não seria uma embaixadora?

 

Em 2017, a eslovena foi premiada pela revista Restaurant como a melhor chef mulher do mundo. No mesmo ano, seu restaurante entrou, pela primeira vez, na badalada lista dos melhores do mundo feita anualmente pela publicação. De lá para cá, só subiu na colocação: de 69o para 38o lugar.

 

 

Mas qual é o segredo de sua cozinha? O que o Hiša Franko tem de tão incrível assim?
“Hiša Franko é nosso lar. Vivemos e trabalhamos aqui 24 horas por dia, junto com os clientes que vêm, ficam conosco e comem no restaurante. Isso significa que precisa ter muito amor e dedicação no que fazemos. Acho que isso é óbvio em toda a experiência. Existe uma vibe especial no lugar, um quê caseiro, muito pessoal.”

 

 

RESTAURANTE por Edison Veiga, de Bled, Eslovênia | Matéria publicada na edição 114 da Revista Versatille.

 

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