A representação do beijo e do amor na história das artes plásticas
Desde os primeiros registros até obras icônicas, analisamos como o beijo foi retratado ao longo da história da arte
Um dos dilemas da humanidade é a busca por uma linguagem universal; um denominador comum, capaz de unir e neutralizar diferenças entre os povos do planeta. Uma das poucas línguas com esse poder é, sem dúvidas, a artística. A arte é uma forma de expor sentimentos e percepções inerentes, comuns a todo ser humano. Para ser reconhecida universalmente, uma obra também precisa de um tema igualmente livre de fronteiras culturais, sociais e geográficas. É quando se fala sobre o amor, e o maior símbolo de afeto entre duas pessoas, além de carícias, mãos dadas e abraços apaixonados: o beijo.
LEIA MAIS
- As camadas infinitas no trabalho da artista Flávia Junqueira
- Japan House abre exposição inédita sobre o papel das janelas
- Beatriz Werebe e Kura Arte se unem em projeto artístico inédito
Um dos registros mais antigos do beijo na história da arte vem da civilização antiga de Etrúria (atual Toscana, Itália). O pesquisador Pedro Fernandes Galé, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com especialização em história da arte e antiguidade, aponta para a arte etrusca como a primeira a insinuar um beijo. A tampa de uma urna funerária (do século 4 a.C.) mostra um casal entreolhando-se, em vias de se beijar.
A iminência do ato foi predominante no primeiro período da história. “Na antiguidade, o beijo raramente é consumado. É até mais fácil encontrar sexo”, afirma o historiador. O túmulo de um casal de 3 d.C., localizado na Via Ápia (uma das principais estradas da Roma antiga), apresenta um beijo propriamente dito. Porém, peças do tipo faziam parte de acervos particulares e nunca eram expostas em ambientes públicos. Uma das explicações do especialista para esse padrão é a questão do pudor, “se é decoroso para um romano ou um grego pintar um beijo”, e há ainda um problema técnico: “Na sobreposição de dois rostos, um vai esconder o outro. O ato não é plasticamente bonito para a época”, explica Galé. A representação na arte do Oriente é até mais escassa durante o mesmo período. “Não faz parte do registro figurativo deles.”
Os beijos só aparecem com mais frequência na Idade Média, principalmente na Itália e nos séculos 14 e 15, de forma intrínseca à religião e à mitologia. Um deles é o clássico O Beijo de Judas (1304-1306), de Giotto di Bondone, na Cappella degli Scrovegni, em Pádua. O afresco retrata uma cena caótica com um beijo ao centro, representando a tradicional iconografia: a traição de Judas a Jesus. “Posto o cristianismo e essa pintura, o beijo ficou vinculado à alegoria da traição”, diz Galé.
Em Fonte da Juventude (1420), de Giacomo Jaquerio, nove cavaleiros, “figuras de honra”, encontram-se em um contexto obsceno. “O beijo aparece como lugar do vício, junto da questão do jovem, com um transbordamento de paixões e apetites”, explica o pesquisador. Um exemplo da mitologia grega é Júpiter e Io (1532-1533), de Antonio Allegri da Correggio, com Zeus beijando uma sacerdotisa de Hera em meio a uma penumbra. “Tem ambiguidade. A jovem não está concedendo, mas está em êxtase. É um paradoxo”, define o historiador.
Por volta de 1800, com a ascensão do pensamento burguês, o pós-iluminismo e a Revolução Francesa, a história se transforma. “O humano passa a ser belo. O beijinho vira beijão”, conta Galé. “A arte não é isolada, é um reflexo de histórias e costumes de cada período”, complementa a curadora de artes plásticas Denise Mattar, que já foi diretora do Museu da Casa Brasileira, do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Como fruto de seu tempo, a arte imita a vida. Os séculos 19 e 20 tomam rumos ainda mais inesperados com as novas vanguardas artísticas. Aprecie, a seguir, o desenrolar dessa história de amor pelas representações mais icônicas do beijo, segundo a curadora.
1. Psique Reanimada pelo Beijo do Amor, 1793, Antonio Canova, escultura de mármore, 1,55 x 1,68 m, Museu do Louvre (Paris, França)
Afrodite encarrega o filho Eros de matar Psique, por ter ciúmes de sua beleza. A deusa pede que ele a acerte com uma flecha para que ela se apaixone pelo ser mais repulsivo na Terra. No entanto, Eros se machuca e é ele quem fica apaixonado por Psique. A escultura representa o momento em que ele a acorda com um beijo de amor, após a flechada. “É um amor apaixonado. Uma obra de arte para ver antes de morrer”, comenta Denise.
2. O Beijo, 1888/1889, Auguste Rodin, escultura de mármore, 1,82 x 1,12 x 1,17 m, Museu Rodin (Paris, França)
A nobre Francesca da Rimini apaixona-se por Paolo, irmão mais novo de seu marido, Giovanni Malatesta. Essa é a história imortalizada no Inferno de Dante Alighieri (primeira parte da Divina Comédia), que termina com o casal descoberto e morto por Giovanni. A escultura de Rodin captura o exato momento da morte, sem que seus lábios cheguem a se tocar. A obra foi inspirada nos delírios amorosos vividos entre o artista francês e sua assistente, Camille Claudel.
3. Pigmalião e Galateia, 1890, Jean-Léon Gérôme, óleo sobre tela, 89 x 67 cm, Metropolitan Museum of Art (Nova York, Estados Unidos)
Em uma metáfora para a relação entre criador e criatura, a pintura mostra o escultor Pigmalião apaixonado por sua estátua Galateia. A deusa Afrodite traz a obra inanimada à vida e, no mesmo instante, acontece o beijo entre os dois.
4. Na Cama, O Beijo, 1892, Henri de Toulouse-Lautrec, óleo sobre tela, 70 x 54 cm, coleção particular
Toulouse-Lautrec foi um pintor conhecido por sua vida boêmia, como frequentador assíduo de cabarés. Fazendo jus a essa sensualidade rotineira, sua obra traz duas mulheres em um momento de amor. Há certa tensão na cena e ambas parecem temer a separação. À época, o artista considerou a pintura como o epítome do prazer e deleite sensual.
LEIA MAIS
- Conheça Hayao Miyazaki e o “mundo mágico” em sua filmografia
- Galeries Lafayette realizará evento em homenagem a Paris
- O retorno da música disco e da estética dos anos 1970 e 1980
5. O Beijo, 1907/1908, Gustav Klimt, óleo e folha de ouro sobre tela, 180 x 180 cm, Österreichische Galerie Belvedere (Viena, Áustria)
Uma das obras de arte mais caras já vendidas na história,O Beijo usa o decorativismo para criar uma ambientação etérea para o beijo de um casal. O homem, com pescoço forte e impositivo, simboliza a típica masculinidade, enquanto a mulher, ajoelhada, assume um papel passivo no abraço. As figuras, ornamentadas por formas geométricas e sobre um tapete de flores, são cercadas por um fundo dourado, com efeito obtido por folha de ouro.
6. O Impossível, 1945, Maria Martins, escultura de bronze, 79,5 x 80 x 43,5 cm, Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Uma das poucas mulheres e a única brasileira a integrar de fato o grupo dos surrealistas, Maria Martins tinha uma sensualidade aflorada. Sua obra fala sobre relações e as impossibilidades que as permeiam. Em O Impossível, dois corpos usam tentáculos afiados para se aproximar na direção do outro, em uma disposição que sugere atração e afastamento. “Esse beijo tem uma agressividade. Dá a ideia de algo impossível”, comenta a curadora.
7. Beijo na Floresta, 2007, Rubens Gerchman, acrílico sobre tela, 120 x 120 cm, coleção particular, licenciamento Instituto Rubens Gerchman
Rubens Gerchman dedicou-se a uma série interminável de beijos, desde amassos no banco de trás de um automóvel até os mais recentes, como os amantes em uma floresta azul de flores e traços botânicos – obra feita um ano antes de sua morte. “Seu estilo é bem pop, numa pegada Andy Warhol”, comenta a curadora. O ato de carinho entre duas pessoas permeia toda a sua obra, até o fim de sua carreira.
8. O Beijo, 1969, Pablo Picasso, óleo sobre tela, 97 x 130 cm, Museu Picasso (Paris, França)
Outro artista sensual, Picasso teve oito mulheres e quatro filhos. Durante a vida, passou por várias fases artísticas e, em 1969, já havia deixado o cubismo tão presente no início de seu trabalho. Com traços surrealistas, O Beijo retrata duas pessoas devorando-se. “É muito forte. Esse é um momento em que Picasso está muito mais solto, já sabia o que queria e pronto”, explica Denise.
Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 120 da Versatille