“A minha história com o CCSP”: um relato de Erika Palomino à frente do Centro Cultural
Desde fevereiro no comando de uma das mais amadas instituições culturais da capital paulista, Erika Palomino descreve o trabalho que fez público do local crescer em 30%
“A orquestra de 90 integrantes começa a tocar na Praça das Bibliotecas. As cadeiras dos 800 convidados ocupam os três pisos do espaço, cortado por enormes pilares de aço curvados e sob as milhares de lâmpadas do mais imponente prédio do Centro Cultural São Paulo – o CCSP –, colosso arquitetônico dos anos 1980 que, agora, vibra, brilha, ilumina os novos tempos da cultura na cidade.
Durante 30 minutos, 90 modelos tomam as rampas de concreto, subindo e descendo ao mesmo tempo – a profusão de pessoas confunde o olhar. Elas vestem figurinos de ópera e dança, oriundos dos acervos do Theatro Municipal de São Paulo. Peças que nunca ganharam as ruas, interpretadas por 30 criadores de imagem, transportando o passado para o presente. Essa cena ainda não aconteceu. Será a primeira grande ação, um grande sonho, que vamos realizar em outubro no CCSP, um projeto da curadoria de Moda inaugurada nesta minha passagem à frente desse extraordinário equipamento municipal.
Desde fevereiro, tornei-me diretora do espaço, que é o maior da cidade na cultura, em tamanho e espectro de atuação – sem dúvidas, o maior desafio profissional da minha trajetória de 30 anos de (muito) trabalho. Por sua grandiosidade, por sua complexidade, sua logística, seu planejamento, sua ousadia, também esse desfile é desde já um dos mais instigantes do ano para todas as equipes envolvidas.
Sou carioca e me mudei para São Paulo em 1985. O CCSP acabara de abrir, tinha apenas três anos de existência. Simplesmente não havia nada mais moderno na cidade. Foi o primeiro centro multidisciplinar da pauliceia. Sua arquitetura, desde então icônica, não se parecia com nada visto até então. Para uma jovem de 17 anos aqui chegando, vinda da Zona Sul carioca, o impacto foi enorme.
As bibliotecas, horizontais, infinitas (são mais de 282 mil exemplares!). Salas de espetáculo, sendo uma delas em formato arena (a legendária Adoniran Barbosa), duas salas de cinema, os jardins, as áreas de convivência ao ar livre, uma programação com muita dança, teatro, shows. Um mundo idealizado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles, então jovens arquitetos, que somente agora começam a ser valorizados por seu legado. “Fizemos um espaço para reunir as pessoas, um edifício democrático, elaborado em plena ditadura militar”, declarou Telles, certa feita.
Do estilo da Escola Paulista vêm a mimetização na paisagem, a introspecção e a criação do espaço como continuidade da rua. Assim, com suas cinco entradas, sem portas, sem catracas, livre, lugar de convivência per se, o CCSP ajudou a desenhar também em minha mente e em minha vida, fisicamente, os contornos de uma experiência de cidade que se desenhava para mim então, naqueles meados dos anos 1980.
Eu vinha para São Paulo para estudar, mas já estava grávida de meu primeiro filho, o Pedro. São Paulo era a grande boca de mil dentes, como perfeitamente definiu Mário de Andrade. Uma bocarra que se mostrava então inescrutável, que eu duvidava que pudesse algum dia penetrar. O Centro Cultural São Paulo, entretanto, recebia-me e me acolhia. Ali eu passava despercebida em minha inadequação adolescente.
Como eu, todo mundo em SP tem uma história com o CCSP. Ele faz parte da memória afetiva da cidade – tanto que foi recentemente eleito pela Vejinha a terceira instituição cultural mais amada (atrás apenas do Masp e da Pinacoteca do Estado). Voltamos então para fevereiro de 2019, e eu retorno ao CCSP para sentir o lugar, já com o inesperado convite do secretário de cultura Alê Youssef, na gestão do prefeito Bruno Covas, para que eu me tornasse diretora.
A sensação, dessa vez, foi intimidante: que lugar enorme! Porém, era um sábado e a diversidade do público ali presente confirmava que eu estava no lugar certo. Juntar pessoas, incentivar e valorizar diferentes formas de existir, defender liberdades e individualidades, olhar para manifestações artísticas e para as linguagens mais inovadoras. Tudo isso define minha persona profissional, pautando vida e escolhas nas últimas três décadas.
Ao chegar, no dia 8 daquele mês, fui recebida pelos 200 funcionários do CCSP, numa cerimônia com o secretário, que então me apresentou ao time e anunciou seus planos para o equipamento: resgatar sua vocação para a modernidade e reforçar os elos de pertencimento da população com o Centro Cultural São Paulo, a partir da ocupação orgânica que gentes de todas as tribos e corpos de todos os gêneros fazem nas áreas de convivência.
Foram três as iniciativas concretas e imediatas ao assumir o cargo. Trouxe de volta a curadoria de Dança, ausente depois de um inacreditável hiato de dois anos na programação, agora sob a gestão da experiente Sônia Sobral. Convidei a pesquisadora Karlla Girotto para criar a curadoria de Moda e o artista Mauricio Ianês (que também é stylist) para a nova curadoria de Performance. O antropólogo especializado em artes plásticas Helio Menezes veio para a Literatura. Estabelecemos, então, as bases para as curadorias trabalharem de forma transversal, colaborativa, seguindo as premissas do centro multicultural desenhado lá atrás. Não que a ideia seja nova, mas, ao chegar, identifiquei as curadorias operando de modo independente, num modelo quase feudal.
E agora o sonho é real. Seis meses depois, temos muitos projetos compartilhados, com essa integração acontecendo no dia a dia e nas inspiradoras reuniões semanais. Todes juntes. A receita é infalível: gente criativa inspira gente criativa. Daí que pilares da programação do Centro Cultural São Paulo, como Kil Abreu, no teatro adulto, a grande dama Lizette Negreiros, no teatro jovem, e Alexandre Matias, na música, trouxeram a base para que o elenco recém chegado se espalhasse, respondendo com vigor ao novo projeto, como a dupla Carlos Pergoraro e Célio Franceschet, do cinema, e Adelaide Pontes, nas exposições dos acervos.
No cotidiano hercúleo de domesticar a quimera da administração pública e suas nuances, o experiente Jurandy Valença veio somar, dividindo comigo a lindíssima sala de paredes de vidro da diretoria (sou rata de Redação, e o isolamento em torres de marfim é o que de pior pode acontecer para um projeto desse). Ali, estamos lado a lado com Rodolfo Beltrão, na supervisão das curadorias, este que me acompanha há quase uma década por onde quer que eu vá. A estrutura é essa. Mas são 200 os trabalhadores da cultura que, bravamente, sete dias por semana, batalham para cuidar dos 46.500 m2 e entregar toda essa programação de alta qualidade para a população, quase sempre gratuita, ou a preços bem acessíveis. Com isso, nos cinco primeiros meses, aumentamos a audiência do público em 30% em relação ao mesmo período de 2018, chegando a mais de 120 mil visitantes atendidos por mês.
Com 70% de seu público na faixa de 18-40 anos, o CCSP é jovem por excelência, com 50% dele com formação universitária, frequentando as bibliotecas (a segunda maior da cidade) e média de 13,5 mil pessoas/mês. As pessoas vêm de todas as partes da cidade, já que estamos praticamente dentro da estação de metrô Vergueiro e no eixo da Avenida Paulista.
Azeitar toda essa engrenagem não seria possível sem um consistente e inovador projeto de comunicação, implementado por Fabio Polido, vindo do Masp. Com esse movimento, chegamos a 133 mil seguidores no Instagram, num crescimento orgânico de 47% da base. É a principal ferramenta de ativação do CCSP nessa era em que a visibilidade nas redes sociais ajuda a chancelar o que acontece no mundo off-line. Muito dessa nova imagem vem com a nova identidade visual para a marca CCSP, criada por Elaine Ramos (da editora Ubu) e pelo talentoso Vitor Cesar para ativar a sigla, visando tornar mais ágil em sua navegação a grande nave do Centro Cultural São Paulo, com seus recém-completos 37 anos: um CCSP em fluxo e em movimento.
Agora, com a atenção do poder público, o carinho da população e o investimento da iniciativa privada, que se dá por meio da Associação dos Amigos do Centro Cultural São Paulo, andar pelos corredores dos prédios hoje traz aquela sensação que os paulistanos adoram: de que poderíamos estar em uma instituição de qualquer grande cidade do planeta”.