As fragrâncias têm o poder de nos transportar no tempo — e os hotéis de luxo estão usando isso a seu favor
Com o desenvolvimento de aromas próprios, hospedagens conseguem mexer com o sentido mais complexo e primitivo do ser humano: o olfato

É instantâneo. Basta sentir o cheiro daquele creme específico, que levei na bolsa de mão em uma viagem, para que as memórias e os sentimentos daqueles dias retornem, tomando conta do meu cérebro. É quase um superpoder. Posso até sentir o cheiro de um livro de sebo, com páginas amareladas e alto risco de uma crise de rinite, e ironicamente adorá-lo porque ele me transporta diretamente para a infância, para a biblioteca da casa dos meus avós.
Tomei a liberdade de começar esse texto de forma pessoal porque o assunto envolve experiências individuais. Qualquer leitor pode se relacionar com esse parágrafo a partir das próprias memórias olfativas. Talvez não seja o livro do sebo o responsável por ativar emoções, mas o cheiro de um café com bolinho de chuva da casa de uma tia. Ou, quem sabe, a fragrância de um hotel em que se hospedou nas melhores férias de sua vida.
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Para uma hospedagem que se empenhou em desenvolver sua identidade olfativa, este é o cenário dos sonhos: criar um laço íntimo com os hóspedes por meio de uma fragrância. “É um detalhe que nos dá identidade. Da mesma forma que as pessoas são lembradas por seus perfumes, os lugares também o são”, destaca o argentino Ariel Barrionuevo, diretor-geral do hotel La Coralina Island House, em Bocas del Toro, Panamá.

La Coralina Island House
Em um cenário paradisíaco, a hospedagem trabalhou ao lado da artesã local Eve Cabrera, dona da marca Jungle Blends, para criar um cheiro que transmitisse o frescor da natureza. “A ideia era produzir algo a partir da chuva, com os aromas das flores que revivem na selva imediatamente após o temporal parar”, recorda o diretor.
O processo de criação envolve muitos testes, mas nesse caso o perfume ideal surgiu a partir da gardênia, que hoje é a base para o cheirinho característico do hotel – presente no ambiente e nos sabonetes artesanais das acomodações. “Saber que a experiência da nossa hospedagem se completa com todos os sentidos humanos nos dá muita felicidade”, completa o diretor.

A fragrância do La Coralina Island House
O que os hotéis de alto padrão estão percebendo, de forma geral, é que o olfato é o sentido mais importante quando se trata de despertar emoções. Complexo e primitivo, ele possui uma relação direta com o sistema nervoso central, que por sua vez estimula o sistema límbico (responsável pelo controle das emoções, do comportamento e da memória). Sendo assim, o cheiro é uma das ferramentas mais rápidas e eficientes para a alteração do nosso estado emocional.
Por mais que seja um sentido muitas vezes inferiorizado em relação à visão e à audição, vale pararmos para refletir que estamos respirando e sentindo diferentes odores o tempo todo – agora mesmo, enquanto escrevo. E você, enquanto lê. Foi isso que, na história da evolução humana, nos ajudou a preservar a existência por meio de alertas olfativos, como o cheiro de uma comida estragada ou da presença de um predador.
Hoje, talvez o olfato não seja a principal estratégia de sobrevivência humana, mas ainda assim é inegável a maneira como ele nos afeta e desperta sentimentos, sejam eles positivos ou negativos. Saber trabalhar com isso pode ser fascinante.
O PODER DA SINESTESIA
Renata Abelin, diretora Latam de inovação & marketing da casa Givaudan, é especialista nessa alquimia. A perfumista já trabalhou no desenvolvimento de fragrâncias para hotéis e sabe quantas informações são consideradas antes que um aroma seja efetivamente escolhido. “É possível transmitir todo tipo de mensagem por meio de um cheiro: afeto, mistério, riqueza, modernidade… é algo sinestésico, então até mesmo cores, temperaturas e ambientes, como florestas e praias. São infinitas possibilidades”, explica ela.
“Sendo assim, o processo de criação de um aroma é muito conectado com a experiência que um hotel busca passar para os seus hóspedes. Se a acomodação tem uma atmosfera com luz baixa e cortinas escuras, talvez queira transmitir um clima intimista, e pode apostar em notas mais misteriosas. Provavelmente algo diferente da mensagem que um hotel clean, claro e moderno almeja”, completa. “A identidade olfativa é tão importante quanto a decoração e o design escolhido. Ela é etérea. Complementa o ambiente.”
A partir disso, são inúmeros os hotéis que já perceberam a importância de um perfume próprio. No Brasil, podemos citar grandes nomes, como Fasano, Castelo Saint Andrews e Botanique Hotel & Spa – esse último com um desenvolvimento de fragrâncias elaborado, que contou até com a contribuição de pesquisadores de aromacologia (ciência que estuda a influência dos aromas no cérebro) da Unicamp. Localizada na Serra da Mantiqueira, em São Paulo, a hospedagem fez uma pesquisa extensa sobre a flora local, elegendo cerca de 60 espécies nativas que compõem a base dos princípios ativos de toda a sua linha de amenities.

Suíte do Botanique Hotel
Como o nome já entrega, o Botanique valoriza intensamente a botânica e a rica biodiversidade da Mantiqueira, e é isso que a composição olfativa com notas cítricas, leves e frescas – e uma delicada base amadeirada – busca passar. “Transmitir a nossa alma é fundamental para aprofundar a conexão dos hóspedes com nossa filosofia de bem-estar, sustentabilidade e sofisticação”, ressalta Flavia Camara, diretora de marketing do local.
Internacionalmente, os hotéis também se empenham nessa produção. No clássico parisiense Le Burgundy, a identidade olfativa foi desenvolvida em 2012, com o objetivo de exaltar um clima de vida “à la parisienne”. O aroma é contemporâneo, com toques de couro, incenso, patchouli e violeta. Um mix de aconchego e sensualidade que conversa com a longa história do hotel-butique de luxo. “Nossa fragrância cria uma atmosfera acolhedora e memorável. Os clientes adoram, especialmente nossos hóspedes recorrentes. Assim que entram, eles se sentem em casa”, destaca a gerente-geral Nicole Wilms-Kauffmann.

Le Burgundy
Para Renata, como especialista, assistir ao mercado reconhecendo cada vez mais o poder olfativo é algo encantador. “Quando você consegue provocar uma reação positiva a partir de um cheiro, alcança uma parte do cérebro com memórias mais longas, que vão surgir sempre que aquele aroma for sentido novamente. Pensar que temos esses gatilhos é algo mágico”, conclui.
Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 138 da Versatille