Qual a função da moda? Como você a percebe?

Nestes tempos líquidos de referências tão voláteis, buscar refletir sobre a moda pode ser confuso e cansativo. Além disso, a maneira como ela interage com o consumo a faz, de modo geral, parecer valer cada vez menos. Não acha?

Dou início a essa coluna com o desafio e a sorte de falar de moda sem imagens auxiliares. Como boa teórica, tenho grandes planos, pois vejo que vivemos – em todas as artes – o melhor dos tempos. Ampliamos, agregamos padrões, crescemos em possibilidades. Tudo o que parece muito é muito possível de se encaixar na vida de cada um de nós. Apesar de parecer confuso, hoje somos mais reais. Acontece que a falta de reflexão sobre o tema faz tudo parecer superficial e nos perdemos nos algoritmos da moda pela moda, perdendo também a chance de nos reconhecermos através das escolhas que fazemos, entre todos esses movimentos que ela aponta e materializa. Quem dá sentido às nossas escolhas cotidianas, afinal, somos nós mesmos. O processo é sempre individual, apesar de coletivo.

Vamos ampliar para enxergar os seus códigos de linguagem, reconhecer os seus símbolos. No macro, perceberemos os sinais dos tempos através dos cenários culturais e das tendências de varejo, mas a provocação estará sempre no micro, na relação com o espelho e na investigação dessas tendências de comportamento em nossas próprias escolhas. Pensar na roupa como exploração de nossa identidade é o que proponho.

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“Zeitgeist” é um termo em alemão que corresponde ao “espírito do tempo”. Embora possua grande subjetividade em seu significado, após Jung, passou a ser compreendido como a percepção do inconsciente coletivo e, por isso, é utilizado para falarmos de tendências comportamentais e seus reflexos, como a moda, que é a vestimenta de um tempo. Resulta de uma conjunção de pensamentos e ações, influenciando em ciclos.

Sendo a moda reflexo do que vivemos, ela vive um novo momento. É sobre esse ciclo de agora que vamos trocar, olhar para o tempo para analisar esse continuum resgate da roupa do passado no presente, e revelar o panorama da moda atual: nostálgico, polarizado e plural.

É interessante saber que o que entendemos como moda nasceu muito recentemente. As pessoas sempre se vestiram de acordo com suas atividades. Com poucos ajustes, por séculos, a mesma túnica foi usada por homens e mulheres, do Egito a Roma. No Ocidente, foi só depois dos anos 1500 que as primeiras ideias ligadas à valorização do novo e do diferente refletiram no Zeitgeist pulsante do iluminismo. O primeiro livro nasceu nessa época, junto com a percepção de ideias como sexualidade e individualidade; até então, as pessoas não questionavam seu status quo. E então, nos anos 1900, com as grandes labels como Chanel, Dior e Schiaparelli, e as primeiras noções de impressão de personalidade na roupa, é que a moda realmente nasceu. No Oriente, ainda tardou para acontecer, tendo em vista o valor e o significado de tradição para essa cultura; a moda chegou questionando a própria história ao propor uma forma de vestir diferente daquela que sempre existiu.

Foi um tempo em que avançamos em experimentações. Despertadas pelo contexto histórico, cada década desafiou a anterior com formas, cores e costumes bem distintos e definidos. Se nos anos 20 as mulheres se libertaram do espartilho, nos anos 30 passaram a poder usar calças. A moda era entendida e valorizada por aquilo que era novo; só o novo conseguia comunicar aquele novo tempo. A produção em massa proporcionou a busca por gostos e significados, mas foi só depois dos anos 2000, com a queda dos dress codes e a criação de inúmeras novas marcas e propostas, que a moda passou a ter uma relação mais pessoal, e o estilo passou a ser valorizado mais que a própria novidade.

Vivemos agora um novo contexto. A moda como expressão do novo já não é a linguagem da maioria das pessoas. Atualmente, não necessariamente quebramos padrões, mas atribuímos novos, diversos dos comuns. Saímos do “assim” ou “assado”, ampliamos as possibilidades de ser. Passamos a valorizar a autenticidade, o talento de expressar quem se é na roupa a partir da mistura de códigos de épocas e estéticas diferentes. Vivemos uma moda plural, porque finalmente é diversa. E por conta disso, muitas vezes, antagônica.

Analisar tendência vinte anos atrás era mais simples que agora. Atualmente, paralelo ao número crescente de marcas que estimulam comportamentos no vestir, na mesma semana de moda, temos apostas visuais que figuram estéticas contrárias como o minimal e maxi, o natural e o futurista. A depender de seu círculo, algoritmos e interesses, o cenário de uma bolha específica se amplifica. Isso não é ruim, só que pode oferecer mais se descoberto. Se colocarmos atenção no que escolhemos e não desperdiçarmos a chance de explorarmos nossa própria identidade nessa grande onda visual e estética dos dias de hoje. Se a vida é tamanha imagética, que venhamos a sair do automatismo para nos conectarmos à nossa própria narrativa.

Por Letícia Becker, consultora de moda | Matéria publicada na edição 132 da Versatille