A trajetória de Michaela Coel e por que ela merece uma indicação ao Globo de Ouro
Disputada por gigantes do streaming, Michaela Coel consolidou seu lugar entre os grandes criadores de sua geração com a série I May Destroy You
É uma sinopse que, de cara, pode afastar espectadores mais sensíveis: numa pausa de trabalho, escritora em ascensão sai para um bar, é dopada e sofre violência sexual. Superado o desconforto inicial, no entanto, o que se tem é uma das melhores séries do ano, I May Destroy You, lançamento da HBO criado e estrelado por Michaela Coel. A artista, um dos nomes mais festejados da indústria em 2020, fala com conhecimento de causa: o que relata na série aconteceu com ela na vida real.
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Poucas vozes são capazes de tornar o assunto palatável, coisa que a britânica de quase 33 anos (ela é de outubro, talvez você esteja lendo isso no aniversário dela!) faz com maestria – excetuando-se as cenas relacionadas ao ataque sofrido por sua personagem, há alguns momentos bem engraçados ao longo dos 12 episódios.
“A protagonista tem traços de heroína que enfrenta machismo, racismo, intolerância religiosa, xenofobia e tantos outros espinhos com as armas que possui: a coragem de um humor nonsense e inocente que a faz forte e vulnerável a um só tempo”, analisa a roteirista e crítica audiovisual Viviane Pistache. “Ela parece desconhecer a dimensão dos monstros que cutuca com vara curta, e é assim que ela nos faz rir: esgarçando estereótipos no sentido de esvaziá-los.”
Michaela recusou uma oferta de US$ 1 milhão da Netflix pela série. Optou pela HBO por questões contratuais que permitiram a ela manter-se dona dos direitos da produção, que, tão logo estreou, em junho último, caiu nas graças da crítica e do público mundo afora. Uma vitória e tanto, sobretudo por romper barreiras racistas que há eras impedem mulheres negras de serem reconhecidas e valorizadas – quanto mais ter poder de fogo para barganhar com gigantes do streaming mundial.
E, sim, os dolorosos momentos vividos por muitas pessoas pretas também fizeram parte de seu caminho, como na vez em que ela circulava por um avião a caminho de sua poltrona e foi abordada por outra passageira pedindo que limpasse sua mesa. Foi faxineira de praça de alimentação e, durante muito tempo, a única negra nos lugares que frequentava. Hoje, é dona de voz própria, que quer usar para abrir caminho – caso alguém duvide, representatividade importa, sim!
“Estou determinada a trazer mais mulheres negras e da classe trabalhadora para a sala de roteiro”, costuma dizer a artista. Com seus trabalhos, Michaela Coel tira os personagens negros do estereótipo, conferindo a eles maior complexidade e humanidade. Reiteradamente, a atriz declara que é importante que negros e negras sejam autores das próprias narrativas e não apenas atores e atrizes de histórias alheias. Porque é no domínio do texto que existe a verdadeira possibilidade de se construir novas realidades.
Religião e prêmios – a trajetória de Michaela Coel
Arabella, sua personagem no drama, não é seu primeiro papel com toques autobiográficos. Havia muito de sua trajetória em Tracey, protagonista da divertidíssima Chewing Gum, comédia que a revelou ao mundo. A série surgiu inicialmente como uma cena curta no fim de seu curso de teatro. Depois, foi encenada sob o nome de Chewing Gum Dreams em um teatro londrino, na época em que a jovem atriz ia às ruas oferecer milk-shake a quem topasse assisti-la interpretando os 11 personagens do monólogo.
A ousadia deu certo: o espetáculo conquistou o público dos palcos e abriu as portas do Canal 4 de Londres para tornar-se uma aclamada série com a história de uma jovem garota de 20 e poucos anos, evangélica, cujo maior sonho é perder a virgindade. Obstinada, Michaela reescreveu a série 41 vezes até ver o roteiro aprovado para a TV.
Valeu a pena: o trabalho lhe rendeu dois Baftas (melhor atriz de comédia e revelação). Além de seus projetos, participou como atriz de Black Mirror, no premiado episódio “USS Callister”, e do filme Star Wars: O Último Jedi. Ela ainda foi a profissional mais jovem a dar palestra no prestigiado Festival de Televisão de Edimburgo.
Filha de uma enfermeira imigrante ganesa na Inglaterra, Michaela Coel nasceu em 1º de outubro de 1987 em Reading, pequenina cidade entre Londres e Oxford. Depois, já em Londres, foi criada em Tower Hamlets, bairro próximo ao East End, morando com sua mãe e sua irmã. Assim, a figura paterna sempre foi ausente. Não bastasse, estudou em uma escola católica para meninas.
Na adolescência, enquanto ouvia sem parar os álbuns Where I Wanna Be, de Donell Jones, e Born to Do It, de Craig David, começou a escrever poemas. Com pendores artísticos evidentes, entrou para o grupo de dança de uma igreja evangélica pentecostal, que frequentou até o último ano do curso de teatro na tradicional Guildhall School of Music and Drama, no centro londrino. No novo ambiente, passou a ter amigos gays. E entendeu, naturalmente, que não podia demonizá-los, tampouco enxergá-los com maus olhos, como ensinava sua religião.
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Passou, então, a exercer sua espiritualidade sem cabresto alheio – hoje, é adepta da meditação e de retiros. Para ser artista, largou a Universidade de Birmingham, onde cursou literatura inglesa, ciência política e teologia. A mãe, que antes se preocupava em vê-la trancada no quarto escrevendo, hoje costura os vestidos que a moça exibe em estreias e ensaios, toda orgulhosa.
Sobre a fama, tenta lidar da forma mais natural possível. Para não se sentir atração circense, evita sair de casa. Assim, busca manter seu “senso de humanidade”, não parecer “uma alienígena”. Michaela não bebe álcool, é vegana e apenas fuma o que define como “sucos criativos” (quê?). Mas, quando põe os pés na rua e um fã a aborda, faz questão de conversar de verdade. Às vezes, o papo pode durar horas. “Há uma razão pela qual essas pessoas gostam de seu trabalho. É porque elas têm um cérebro semelhante ao seu. Então, às vezes, conversar com essas pessoas é uma forma de navegar nele.”
por Miguel Arcanjo Prado | Matéria publicada na edição 116 da Versatille
Fotos: Reprodução/HBO