Relembre a trajetória do designer e artista Kenzo Takada

Conhecido pela mistura ousada de cores, estampas psicodélicas e étnicas, o estilista japonês deixou sua marca no mundo da moda e do design

Falecido estilista e designer japonês Kenzo Takada
O estilista japonês Kenzo Takada faleceu no início de outubro, aos 81 anos, por complicações causadas pelo novo coronavírus

A trajetória de Kenzo Takada não foi nada usual para sua época. Nasceu em 1939 em Himeji, uma cidade pequena e isolada no Japão, parte de uma família grande e bastante tradicional. Desde pequeno tinha dificuldade para os estudos em função da dislexia, mas acatou o pedido dos pais para estudar literatura na faculdade, já que eles não aprovavam a ideia de estudar moda, paixão quase proibida que surgiu no início da adolescência – Takada costumava ler escondido as revistas de suas irmãs. Além disso, o cinema americano que chegava no Japão no pós-guerra – e uma de suas únicas janelas para o mundo – também impactava sua criatividade e curiosidade.

 

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Com isso em mente, não é nenhuma surpresa que, apenas um ano após entrar na faculdade, Takada largou o curso escolhido pelos pais para finalmente seguir o rumo que tanto almejava. Em 1958, mudou-se para Tóquio, onde foi um dos primeiros homens na faculdade de moda Bunka. Já nos primeiros passos profissionais demonstrava o grande potencial que o levaria a ser um gigante da moda: em 1961, ganhou o prêmio Soen, uma importante competição de moda, e logo começou a desenhar roupas femininas para a loja de departamentos Sanai, uma das mais importantes do país. No entanto, o verdadeiro pulo do gato surgiu por meio de uma oportunidade inusitada e nada relacionada ao mundo fashion.

 

Em 1964, Tóquio passou por diversas mudanças estruturais para ser a cidade anfitriã das Olimpíadas. Entre as obras, a quadra onde Takada vivia ia ser demolida. Como forma de compensação, foi-lhe dado o valor referente a quase um ano de aluguel. O designer, em vez de usar a quantia para um novo apartamento, aproveitou a oportunidade única e comprou sua passagem, de barco, só de ida, para Paris, com a intenção de ficar apenas seis meses.

Paris – começo da marca própria

Fã assumido de Yves Saint Lauren, pensava que, ao chegar à cidade-luz, ia se dedicar apenas a aprender e observar o que o grande estilista fazia com a Dior e sua marca, bem como outros grandes nomes. Mas lá foi exposto a um novo olhar de mundo, comportamento e, mais importante, estilo. Era um habitué nos brechós da cidade e gostava de ver o que as pessoas vestiam nas ruas e na vida noturna, e logo começou a incorporar tudo em suas criações. “Quando eu abri minha loja própria, achava que não fazia sentido criar a mesma coisa que os designers franceses faziam. Então produzi do meu jeito para ser diferente. Usava tecidos de quimono e outras influências”, disse ele em uma entrevista ao jornal The New York Times.

 

O plano de ficar apenas um semestre na capital francesa foi por água abaixo quando surgiu a oportunidade de trabalhar como desenhista para outros estilistas. Seus desenhos eram tão populares que em apenas cinco anos pôde abrir sua primeira loja própria, Jungle Jap (Japa da Selva), na Gallerie Vivienne, com paredes de florais selvagens pintadas à própria mão. Não demorou muito tempo para que suas peças ganhassem a atenção do público e das capas de revistas internacionais e, por consequência, a dos compradores das lojas americanas como Bloomindale’s, Saks Fith Avenue e Bendels. A peça queridinha dos fashionistas era o pulôver de mangas curtas para usar em cima da camisa, apelidado de “suéter japa”.

 

“Havia algo faltando em Paris. Eu comecei quando não tinha muito acontecendo e usei cor, texturas diferentes, muito algodão barato que eu comprava na Marché Saint Pierre. Naquele tempo, a coisa mais ousada que as meninas usavam lá eram calças estampadas de florais da Cacharel. Acho que isso foi o que me destacou”, disse Kenzo Takada para a WWD em 2018.

 

A insistência em usar o termo japa para o nome da loja trouxe algumas dores de cabeça para Takada. De acordo com um dos primeiros artigos sobre ele pela Newsweek em 1972, com o título “The jap designer” (o designer japa), descrever-se usando um termo considerado pejorativo nada mais era do que uma forma de convertê-lo em uma identidade positiva, uma vez que todo o seu trabalho era transcultural e totalmente único. No entanto, a expressão não foi bem-vinda pelos americanos de descendência japonesa, que ainda sofriam preconceito com os impactos da reação americana após o ataque do Japão em Pearl Harbor. E, aos poucos, a marca evoluiu para o que hoje conhecemos como Kenzo. Bom, há males que vêm para o bem.

 

“Foi estranho no começo. Mas depois me acostumei. Eu nunca quis usar ‘Kenzo’. É um nome muito sério em japonês. Para advogado. E hoje em dia está por todos os lados” , brincou Takada na entrevista para a WWD em 2018.

 

Kenzo trouxe a ideia de que a moda podia ser divertida, criativa e livre. Seu estilo era difícil categorizar: ia na contramão do que a haute couture apresentava em Paris. Suas roupas eram mais largas, permitindo movimento, e havia até um exagero de estampas e formas. Sem contar que ele foi um dos primeiros designers a usar elástico para a cintura das calças e saias. Takada entendia que, mais do que nos desfiles, a moda devia ser relevante nas ruas. “Moda não é para poucos – é para todas as pes­soas. Não deve ser tão séria”, falou em entrevista para o New York Times em 1972.

 

Seus desfiles eram importantes acontecimentos durante as semanas de moda de Paris, sempre com grandes produções e uma abordagem ousada. De tendas de circo onde Takada era apresentado ao público em cima de um elefante às referências de balé em que as modelos mais dançavam do que desfilavam, seus catwalks eram tudo, menos ortodoxos. Segundo diversos fazedores de opinião do mundo da moda, eram os ingressos mais quentes e difíceis de conseguir, pois todos queriam ver de perto o que o designer ia aprontar. Tamanho sucesso e criatividade não ficaram limitados apenas à moda feminina. Só na década de 1980 desenvolveu sua linha masculina e a marca de jeans e também entrou no mercado de perfumes.

Grupo LVMH

O rápido crescimento no mercado, junto à dificuldade que passava em sua vida pessoal, o levou a vender a marca Kenzo para o grupo LVMH em 1993 por aproximadamente US$ 80 milhões. Ele seguiu como designer da marca e participou de grande parte das decisões executivas. Com o suporte de uma grande companhia, o céu era o limite, para a Kenzo e para Takada. Enquanto as linhas de casa e de esporte eram lançadas pela marca, o designer se aventurava em outras áreas criativas, como figurinos para espetáculos e direção de cinema.

 

Talvez tenham sido essas expe­riências que o motivaram a anunciar sua aposentadoria em 1999, aos 60 anos. Há diversas entrevistas com Takada nas quais ele explica que naquela época estava ainda jovem e queria experienciar outras coisas que estavam fora do mundo da moda. O ritmo frenético, demandas comerciais de produção e novas temporadas o impediam de viajar e aprender coisas novas por prazer. O fechamento do ciclo, obviamente, foi marcado por um desfile em um estádio que levava uma retrospectiva de seus 30 anos de carreira, juntamente ao que seria sua última coleção, a primavera/verão de 2000, com a marca que levava seu nome.

 

“Às vezes eu me pergunto por que vendi a marca e por que não fiquei mais tempo nela. Mas tivemos uma boa corrida juntos”, comenta ele sobre arrependimento em sua carreira em entrevista para a WWD em 2018.

Décor/arte

A aposentadoria de Takada não durou muito tempo. Em diversas entrevistas o designer brinca que, depois de um tempo (curto) de descanso e viagens, já estava entediado e à procura de um novo projeto. Dessa vez queria voltar ao mercado, mas também com uma nova direção. Encontrou seu caminho na decoração de interiores e paralelamente na arte. Em 2005, lançou sua primeira marca de itens decorativos, Gokan Kobo, com uma forte presença da cultura japonesa. E teve seu début como pintor em 2010, com a exibição de Um Certo Estilo de Vida.

 

A moda nunca deixou de fazer parte da carreira de Takada, mesmo após Kenzo. Durante toda a sua vida ele foi envolvido com organizações que incentivam a indústria e novos designers.Assim como foi um dos membros fundadores da Chambre Syndicale de la Couture na década de 1970, quando ainda estava em início de carreira, também foi o primeiro presidente da Asian Couture Federation, em 2013.

 

Takada sempre acreditou que seu sucesso era devido ao fato de ele fazer o que amava, sem prestar atenção ao que os outros estavam fazendo, e foi no design de decoração que encontrou seu derradeiro palco. Nos últimos anos, contribuiu com linhas para grandes organizações, entre elas Roche Bobois (2017) e a rede de hotéis de luxo Mandarin Oriental (2019).

Kenzo pós-Kenzo 

Kenzo, a marca, seguiu sua evolução dentro do grupo LVMH, inicialmente sob a direção de Roy Krejberg e Gilles Rosier para as linhas masculina e feminina, em um segundo momento pelo designer italiano Antonio Marras. Humberto Leon e Carol Lim, responsáveis pela loja Opening Ceremony, tomaram a direção em 2011. Em entrevista para a Vogue britânica, em 2012, Leon comentou que seria difícil apontar o que eles adicionaram à marca, pois sua história era tão rica e fascinante que esperavam ter “injetado um pouco de nosso espírito jovem, senso de diversão e molecagem. Mas também queríamos respeitar e preservar as tradições da casa Kenzo, como a importância das estampas e a internacionalidade, que são tão intrínsecas a todas as coleções na história de Kenzo”.

 

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Em 2019, o cargo foi passado para Felipe Oliveira Baptista, que não poupou as homenagens em suas redes sociais ao saber do falecimento de Takada. Despediu-se do mestre no Instagram com a frase “sua energia maravilhosa, bondade, talento e sorriso eram contagiantes. Seu legado vai viver para sempre”. O novo diretor criativo buscou trazer elementos-chave da marca para a última coleção, que, de certa forma, também honrou a trajetória do ícone da moda. “Kenzo sempre foi sobre diversão, celebração e otimismo. Esses desejos foram o combustível do processo criativo. Queríamos colocar aquela energia crua, ousada e curiosa nas roupas e em tudo o que fez parte do repertório”, descreveu ele sobre a coleção no site oficial da marca. “É a hora de um olhar diferente para as coisas, de uma nova perspectiva.” Intencional ou não, foi exatamente o novo ponto de vista que destacou Takada quando foi a Paris.

 

Bernard Arnault, presidente e diretor executivo do grupo LVMH, em nota oficial, também lamentou a notícia e destacou a visão inovadora de Kenzo Takada, que, com a “leveza poética e doce liberdade”, inspirou tantos outros designers. “A casa Kenzo ainda explica sua visão.”

Adeus

Takada faleceu durante a semana de moda em Paris, em outubro de 2020, poucos meses após ter apresentado sua última marca no segmento de decoração e lifestyle. K3, que soa como Kenzo em japonês, foi lançada em janeiro e recebeu novamente o nome que ele tanto evitou usar no começo de sua trajetória. “Meu trabalho é sempre sobre liberdade e harmonia. Gostaria de ser lembrado como um designer que cruzou fronteiras”, contou em entrevista à Vogue americana em 2000. E não há dúvidas: Kenzo Takada criou e rompeu limites até o último momento de sua vida. 

 

Por Miram Spritzer

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