Goles Divinos: de onde vem o fascínio sobre o vinho Romanée-Conti?
A história e as razões que fazem o Romanée-Conti ocupar lugar especial no coração de quem ama vinhos de primeira grandeza
Há marcas de luxo muito valiosas centradas em um produto de alta qualidade, em um artigo singular, num bem raro. O vinho tinto francês Romanée-Conti reúne todos esses atributos, mas vai além. Sua história de sucesso tem raízes milenares e mescla um início sacro, o comando de um príncipe revolucionário, um grande revés e, mais recentemente, um caso de terrorismo agrícola. Sem colocar todos esses aspectos na balança, fica difícil entender seus preços, que atingiram o patamar de US$ 558 mil num leilão organizado pela inglesa Sotheby’s, em 2018. A mais alta quantia paga numa garrafa de vinho até o momento arrematou um raro exemplar da safra de 1945.
Não dá para compreender o já mítico Romanée-Conti dissociado de seu produtor, o Domaine de la Romanée-Conti – ou simplesmente DRC. Para resgatar suas origens, é preciso voltar ao fim do século 11, quando a porção norte da Borgonha foi ocupada por monges beneditinos. Dedicados ao trabalho e à oração na Abadia de Cîteaux, religiosos da ordem dos cistercienses não só cultivaram parreiras e deram início à produção de bons vinhos como estudaram e classificaram o solo, mapeando os melhores lugares e uvas daquele território.
No fim da Idade Média, a qualidade dos vinhos dessa região já despertava o interesse e a cobiça dos nobres franceses. Em um movimento profano, eles aumentaram as taxas sobre as melhores parcelas de terra dos monges na Côte de Nuits e obrigaram a ordem religiosa a se desfazer do Creux de Clos, seu vinhedo a oeste da atual Vosne-Romanée. Nos séculos que se seguiram, a propriedade foi vendida diversas vezes, mas dois personagens ajudaram a moldar a marca “RC”, grafada em ferro no icônico portão vermelho da atual vinícola.
O primeiro, Philippe de Croonembourg, capitão militar e nobre de Flandres, adquiriu-a em 1631 e rebatizou o vinhedo como La Romanée. O segundo, Louis-François de Bourbon, o príncipe de Conti, teve parte de seu título adicionado à marca após sua morte. Primo do rei Luís XV e chefe de gabinete de sua majestade, o príncipe, além de tramar contra o monarca e sua amante madame de Pompadour, adquiriu La Romanée em 1760, mas, surpreendentemente, afastou o produto da monarquia, tirou-o do mercado e transformou-o em sua reserva particular. De qualquer forma, ele não deixou de servir um dos vinhos mais caros da França para amigos e hóspedes famosos, como os iluministas Rousseau e Voltaire e o compositor Mozart.
Com o advento da Revolução Francesa, o novo regime confiscou as propriedades do filho do príncipe Conti, em 1794. A grife, no entanto, sobreviveu, voltou a comercializar seus vinhos com destaque e, em 1869, foi adquirida por um titã da indústria vinícola da Borgonha, Jacques-Marie Duvault-Blochet. Cento e cinquenta anos depois, o atual comandante do DRC, Aubert de Villaine, 80 anos, representa a sexta geração desse clã – numa gestão compartilhada com a família Leroy.
Se a emocionante saga da marca consolidou o DRC como uma espécie de Meca dos enófilos, o trabalho de Villaine à frente dela colocou-o na posição de ídolo do setor. Admirado até por seus concorrentes, o senhor alto, magro, calvo, de sobrancelhas grossas e fala tranquila está longe de ser um popstar. Avesso à badalação e à ostentação, dono de um figurino sóbrio e modesto, dificilmente se afasta por muito tempo da lida diária com suas parreiras. Villaine encarna o típico vigneron (viticultor) da Borgonha, onde o terroir, mais do que o homem, comanda a elaboração dos vinhos.
Nem sempre essa política de não interferência foi aplicada na história mais recente do DRC. Depois de escapar incólume da primeira onda de filoxera, o inseto que dizimou grande parte das parreiras francesas na segunda metade do século 19, a propriedade não resistiu à segunda leva da praga. Em 1945, Villaine, então com 6 anos, observou o avô tomar uma decisão dolorosa: arrancar e queimar todas as videiras do Domaine.
Nesse contexto, o mais disputado vinho da marca ficou sem as safras no período entre 1946 e 1951. Muitas décadas após o fatídico episódio, Villaine não segurou as lágrimas ao perceber que seu principal vinhedo estava novamente sob ataque. Em 2010, cartas anônimas ameaçavam envenenar uma enorme quantidade de parreiras de seu vinhedo de Romanée-Conti. O criminoso, que teve acesso a centenas de videiras, pedia 1 milhão de euros para estancar uma perda maciça da produção. Enfrentando o risco de uma publicidade negativa, Villaine acionou a polícia, que prendeu o chantagista.
Acontecimentos e curiosidades à parte, que razões concretas justificam o fascínio em torno desse vinho tinto, feito exclusivamente de uvas pinot noir? Em primeiro lugar está o fato de dez entre dez especialistas considerarem a região o berço dos melhores pinot noir do planeta. Não só isso. Os vinhos dessa parcela de Côte de Nuits têm como caráter comum uma elegância perfeitamente equilibrada com potência. No caso do Romanée-Conti, anotações sensoriais de Marcelo Copello, um dos principais jornalistas de vinho do Brasil, dão uma ideia da complexidade que esse vinho pode atingir na taça: “Aroma mineral, com bastante terra molhada, muitas especiarias, canela, cravo, pimentas, flores maceradas, notas animais de couro, cerejas, ameixas, cogumelos. Paladar concentrado, multidimensional, taninos finíssimos, aveludados e presentes, acidez excelente, tudo em comovente harmonia”. Tais observações dizem respeito a uma prova da safra 1985, avaliada pelo especialista com a nota máxima: 100 pontos.
O cuidado com a qualidade em todas as fases da produção – orgânica desde 1986 e biodinâmica a partir de 2007 – também figura na lista de trunfos da bebida. Tudo o que não corresponde ao perfeito é rejeitado. Nesse processo, a uva precisa atingir a maturidade ideal antes de passar por uma fermentação mais longa que o padrão (por volta de um mês) em temperatura controlada. O vinho ainda amadurece cerca de 18 meses em barris de carvalho francês novo antes de ir para a garrafa.
Por último, mas não menos importante, está a força de uma marca que responde por nada menos do que oito grands crus da Borgonha, a classificação máxima da região, ligada aos mais nobres terroirs. Além do Romanée-Conti, integram seu portfólio os tintos Corton, Échézeaux, Grands Échézeaux, La Tâche, Richebourg e Romanée Saint-Vivant, e o branco Montrachet. O rótulo mais famoso é, também, o dono do menor vinhedo (apenas 18 mil metros quadrados) e da menor produção entre os tintos (de 3 mil a 6 mil garrafas por ano). “Alguns falam em Romanée-Conti como se ele fosse o único grande vinho do Domaine”, diz Arthur Azevedo, vice-presidente da Associação Brasileira de Sommeliers-São Paulo (ABS-SP).
Na visão dele, que teve a chance de provar todos os grands crus da vinícola, o Romanée-Conti seria a peça mais rara e cara de um belo conjunto de joias líquidas – sua preferida é o La Tâche. “Como os outros vinhos têm uma disponibilidade maior e preços menores, eles não contam com a mesma atratividade para quem busca status, luxo, algo fora da realidade.”
Algo fora da realidade, aliás, é uma ótima introdução para quem almeja uma garrafa do vinho que une a esquerda e a direita no Brasil – Lula e Paulo Maluf ajudaram a celebrizar a marca por aqui. Numa importadora de vinhos ou no comércio em geral, as chances de encontrá-la são próximas de zero. O próprio DRC mantém controle rigoroso sobre as vendas a distribuidores e seleciona, a dedo, os clientes que compram o vinho em pré-venda, antes de ele ser engarrafado. Para a quase totalidade dos mortais, sobra a alternativa do mercado extraoficial, chamado de “cinza” e povoado por falsificações, e as compras pela internet e em leilões, nas quais o já elevado preço de origem de um Romanée-Conti, na casa de US$ 4 mil, facilmente supera os US$ 10 mil. Isso significa que, se você ganhar o privilégio de experimentá-lo, agradeça aos céus. E, claro, aos monges beneditinos.
ÍCONE por Ricardo Castanho | Matéria publicada na edição 114 da Revista Versatille