Dois Papas: o Vaticano versão pop de Fernando Meirelles

Com Dois Papas, Fernando Meirelles mostra em grande estilo os bastidores da chegada de Francisco à Santa Sé e faz seu melhor filme desde Cidade de Deus

Desde o início, Dois Papas sinaliza que pretende ser tudo menos um filme austero e reverente. Na cena de abertura, a tentativa de reservar um bilhete aéreo por telefone resulta em comédia. O cliente se apresenta como Jorge Bergoglio. “Como o papa?”, confirma a atendente. Ouve um titubeante “sim”. A moça pergunta então de onde ele fala. “Vaticano”. Do outro lado da linha, segue-se apenas um lacônico “muito divertido” e o corte do telefonema. A mesma sequência se repetirá ao fim, mas aí já estabelecida a personalidade peculiar e avessa a protocolos que caracteriza o papa Francisco, em contraponto ao jeito solene do até então detentor do posto, o papa Bento XVI. É nessa e em outras oposições que se vale o novo longa-metragem de Fernando Meirelles, estrelado pelos astros Jonathan Pryce como Bergoglio/Francisco e Anthony Hopkins, que vive Joseph Ratzinger/ Bento XVI. Projeto encomendado pela Netflix, a estreia na plataforma aconteceu no dia 20 de dezembro.

 

Se o humor pontua a narrativa, e não raro se mostra tão atinado na análise de situações e comportamentos quanto os conflitos dramáticos, são esses, porém, a razão de ser da proposta. O ponto central da trama é a passagem do barrete papal de Bento XVI para Bergoglio, quando o primeiro renuncia e o outro, então segundo lugar na votação no conclave dos cardeais, assume. No caso, além do ineditismo na abdicação de um papa, a mudança tinha um significado ainda maior, já que se substituía um líder conservador por um nome progressista. Havia mais.

 

 

O argentino Bergoglio chegava à chefia do Vaticano como o primeiro pontífice vindo do Hemisfério Sul e único jesuíta na história da Igreja a subir ao posto – mesmo o nome Francisco era inédito. Mas, se os fatos ocorridos entre fevereiro e março de 2013 são verídicos, como se sabe, no mais o filme imagina o desenrolar nos bastidores em encontros com diálogos fictícios entre as duas autoridades. Vem daí uma das forças do longa, baseado em peça teatral de 2017 de Anthony McCarten, neozelandês responsável pelo roteiro de A Teoria de Tudo (2014) e pelo sucesso Bohemian Raphsody (2018).

 

O próprio McCarten assina o roteiro. O estopim da trama é a decisão de Bergoglio de levar à Itália sua renúncia como cardeal depois da eleição do alemão Ratzinger. Humanista, dedicado quando arcebispo de Buenos Aires a trabalhos em comunidades carentes, ele acreditava que não teria voz no Vaticano de Bento XVI. Mas, ao mesmo tempo que planeja a viagem, recebe o telegrama do papa para que o encontre em Castelgandolfo, o palácio de verão dos líderes católicos nos arredores de Roma. O chamado é estranho, e mais rara ainda a recepção em um local que não o endereço da Praça São Pedro. Bergoglio, claro, atende a ordem.

 

 

A partir daí, torna-se puro deleite acompanhar os diálogos afiados, repletos de duplos sentidos, cinismo e sobretudo humor, em parte pelo protocolo exigido no contexto de autoridades, em parte pela personalidade distinta mas igualmente sofisticada e culta de ambo. Há a irreverência também. O argentino gosta de futebol e música pop e explica ao colega quem é ABBA. Sobra ao outro, um pianista, a música clássica e a certeza de que os alemães fazem as piadas mais sem graça do mundo. Num desafio inicial, Ratzinger diz ao interlocutor que jamais concordará com suas posições progressistas, mas que o tolera. Abre assim o caminho para amolecer o coração do rival e, mais tarde, lançar a decisão de abdicar, preparando-o para ser seu substituto.

 

Hopkins, antes dirigido por Meirelles em 360 (2011), e Pryce, um quase sósia de Bergoglio, são magistrais e responsáveis em grande parte pela acidez das conversas. Em meio a pizzas e refrigerantes, cardápio preferido de Bergoglio, discutem também seus reveses e segredos. O argentino carrega a polêmica de ter dialogado, e para alguns mesmo colaborado, com a ditadura militar em seu país nos anos 1970. O filme revê em flashback a trajetória do jesuíta, seus namoros antes da opção sacerdotal, sua formação e por fim o episódio.

 

 

Por outro lado, a revisão de vida de Ratzinger surge brevemente. O escândalo dos casos de pedofilia que aconteceu em seu pontificado, com postura pouco clara do líder, é lembrado. Mas sua possível adesão ao movimento nazista passa um tanto ao largo, em uma rápida citação que Bergoglio não hesita em negar.

 

Tanto quanto a sintonia entre atores, roteiro e diálogos, a direção ágil de Meirelles tem boa companhia no time técnico, em especial do fotógrafo César Charlone, seu parceiro habitual e também diretor. Entre outros longas e séries de TV, ele dirigiu O Banheiro do Papa (2007), sobre a visita de João Paulo II a uma pequena cidade argentina. À dupla se junta o jovem montador Fernando Stutz. Apesar do tom intimista da história, em boa parte com interpretação apenas dos dois atores e suas conversas, a produção exigiu lances grandiosos.

 

 

O maior deles é a reconstituição em estúdio da mítica CineCittá da Capela Sistina, onde seria impossível filmar a discussão definidora entre os líderes, momento em que Ratzinger anuncia ao colega sua decisão de deixar o posto. De certa forma, Meirelles retorna à ambição do sucesso vivido por Cidade de Deus e o novo filme é tão bom quanto ou melhor. Trata-se de uma outra Cidade de Deus essa agora, mas ele pode conseguir operar o milagre da multiplicação de público, com a bênção das novas plataformas visuais.

 

CINEMA por Orlando Margarido | Matéria publicada na edição 114 da Revista Versatille

 

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