Por dentro da exposição imperdível de Cildo Meireles
Em cartaz até fevereiro, a maior exposição do artista carioca na América Latina cria pontes entre o passado e o presente
Imagine a sensação peculiar de caminhar sobre uma obra de arte composta de 17 mil ovos de madeira, posicionados sob a mira de 33 mil balas de armas de fogo. Essa é Amerikka, instalação concluída por Cildo Meireles em 2013 e exibida pela primeira vez no Brasil atualmente, na mostra Entrevendo. Esparramada em 3 mil metros quadrados no Sesc Pompeia, a exposição, que fica em cartaz até fevereiro, reúne cinco décadas de uma carreira pautada pela revisão dos sentidos, a proposição de novos olhares para objetos cotidianos e seu uso para provocar reflexões. “Trabalhamos em um conjunto de obras inéditas no país – ou que há tempos não eram vistas por aqui”, diz o artista carioca, hoje com 71 anos. “A ideia era corrigir um lapso de até duas gerações.”
Curadores de Entrevendo, Diego Matos e Julia Rebouças usaram como premissas a ideia de sentido e o prédio do Sesc Pompeia, criado pela arquiteta Lina Bo Bardi, para montar a exposição. Sensação, compreensão, sinestesia, escala, direção e propósito, palavras presentes na produção de Meireles, foram fundamentais na construção. “A visão, que é o sentido mais associado às artes plásticas, é desconstruída e desafiada em muitos de seus trabalhos, que nos propõem perceber o mundo de outras formas e desconfiar daquilo que parece verdade”, reforça Julia.
A curadora ressalta que expor tal obra em espaço não museológico é um gesto importante. “Entrevendo foi pensada para dialogar com essa condição democrática e generosa que vemos no Sesc Pompeia. É importante apresentar a produção de Cildo Meireles para um público grande e diverso, fazê-lo participar e se engajar com sua obra, em diferentes linguagens, suportes e temas”, diz ela. Estudioso da obra do artista, o curador Matos recorda a subversão presente em seu trabalho. Como exemplo, conta que, ao ver um pescador tecendo uma rede em Alcântara, em São Gonçalo, no litoral fluminense, Meireles pediu ao trabalhador que criasse uma rede com estruturas tão grandes que não permitissem que nada fosse pescado.
“Apresentar um novo olhar para objetos, sempre com uma proposição política, é característica da obra dele, certamente um dos mais importantes artistas do país, com reconhecimento em todo o mundo”, afirma Bob Sousa, crítico de artes visuais da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). Prova de todo esse reconhecimento mundial são as quatro participações do artista na Bienal de Veneza, principal evento do calendário artístico global, além de exposições em lugares como o Museu Reina Sofia, em Madri; o MoMa, em Nova York; e a Tate Modern, em Londres.
Artista multimídia, Cildo Meireles começou seus estudos em arte em 1963, na Fundação Cultural do Distrito Federal, em Brasília, orientado pelo ceramista e pintor peruano Barrenechea. Em 1967, mudou-se para o Rio, onde estudou na Escola Nacional de Belas Artes (Enba). Nessa época, desenvolveu a série Espaços Virtuais: Cantos, com 44 projetos, em que explorou questões de espaço, desenvolvidas ainda nos trabalhos Volumes Virtuais e Ocupações (ambos de 1968-1969), e ainda lecionou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), no qual criou a Unidade Experimental, em 1969.
O caráter político de suas obras surgiu em trabalhos como Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) e Quem Matou Herzog? (1970), cujo título recorda o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura. Entre 1970 e 1973, viveu em Nova York, onde criou a instalação Eureka/ Blindhotland e a série Inserções em Circuitos Antropológicos. De volta ao Brasil, desenvolveu cenários e figurinos para teatro e cinema e, em 1975, assumiu o cargo de direção da revista de arte Malasartes. Nessa mesma época, criou suas famosas obras com cédulas de dinheiro, como Zero Cruzeiro, Zero Centavo (ambas de 1974-1978) e Zero Dólar (1978-1994).
Em 2000, teve grande parte de sua obra condensada no livro Cildo Meireles, editado no Brasil pela Cosac & Naify e que foi originalmente publicado em Londres, em 1999, pela Phaidon Press Limited. Essa produção profícua lhe fez receber, em 2008, o Prêmio Velázquez de las Artes Plásticas, concedido pelo Ministério de Cultura da Espanha. No ano seguinte, viu sua carreira virar o longa Cildo pelas mãos do cineasta Gustavo Moura. Agora, meio século de uma vida repleta de provocações aparece na exposição que une o tempo atual ao passado, criando conexões não só temporais como entre texto e imagem e até mesmo química e física, passando por abordagens formais e histórico-sociais, segundo definição da curadora Julia Rebouças.
Cildo Meireles, que agora criou cédulas que perguntam “Quem matou Marielle?”, em referência ao brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco em 2018, espera que suas obras, em contato com o grande público, contribuam para soprar novos ventos ao país. “Apesar da triste situação brasileira da atualidade, a exposição é também uma tentativa de contribuir para que a gente não se deixe deprimir com essa realidade”, diz o artista. “Como sempre achei, desde o período ditatorial, a pior censura é a autocensura. Acho que, se as pessoas ficarem muito impressionadas, ligadas, enfim, deprimidas com a atual situação, é mais um motivo para você tentar não ser paralisado nesse processo todo de criação e de exibição de trabalho. Penso que isso é que não pode ser afetado. Porque os palhaços tristes passarão.”
ARTE por Miguel Arcanjo Prado | Matéria publicada na edição 114 da Revista Versatille