Carolina Ferraz entrevista Tarcísio Meira
Separados por alguns bons capítulos (pode chamar de tempo), Carolina Ferraz e Tarcísio Meira batem um papo sobre uma paixão em comum: atuar.
Tarcísio Meira, 84 anos. Carolina Ferraz, 51. Ela começou a carreira de atriz em Pantanal, um marco da teledramaturgia brasileira, de 1990, na saudosa Rede Manchete. Ele deu seus primeiros passos antes mesmo de as novelas brasileiras existirem – e estava no elenco da primeira delas, na também extinta TV Excelsior.
A convite da VERSATILLE, Carol bateu um papo com Tarcisão, como é carinhosamente chamado, sobre a paixão que têm em comum: atuar. Falando no assunto, ele termina 2019 com mais um trabalho elogiado no currículo; o personagem principal na peça O Camareiro, com Cassio Scapin. Ela, por sua vez, estreia em novo papel: o de entrevistadora, com direito a canal no Youtube.
CAROLINA FERRAZ: Você sempre soube que ia ser ator? Porque eu não. Eu me descobri atriz. E amo meu ofício.
TARCÍSIO MEIRA: Não, não. A Glória [Menezes, esposa dele] sempre quis ser atriz, desde menina. Eu não, nunca imaginei ser ator. Foi uma coincidência para mim. Gostei e fiquei, me dei bem e isso me estimulou muito, tive boas críticas.
CF: Você começou no cinema, na TV, no teatro?
TM: No teatro. Fiz muito teatro. Com o Sergio Cardoso e a Nydia Licia, que tinham uma companhia muito boa. O teatro Bela Vista era deles – hoje em dia é o Teatro Sergio Cardoso. E fiz Teatro Novos Comediantes [Zé Celso], Antunes [Filho], Ademar Guerra. Fiz bastante teatro em São Paulo.
CF: Quando você passou a fazer mais televisão, o que isso implicou em seu trabalho como ator?
TM: Aquilo era uma invenção, uma coisa nova para nós. Uma loucura. Tinha uma novela três vezes por semana na Tupi, ao vivo. Era interessante, mas não tinha a mecânica atual, de ter um gancho, chamar e prender o público, mesmo entre um bloco e outro. Eram teleteatros muito bons, ao vivo, menina.
CF: Nem consigo imaginar a pauleira que isso devia ser!
TM: Tinha mil artifícios, precisava trocar de roupa, improvisar se não desse certo e dar um jeito de continuar, porque você sabia que tinha milhares de pessoas assistindo. E era bom. As pessoas viam. Fizemos grandes coisas. Quando aconteceu a novela, tinha 40, 50 capítulos, com todos os ganchos possíveis. Era meio juvenil, água com açúcar. Eu fiz com má vontade, com bronca; a Glória, nem tanto. Conheci o Boni nessa época. Comentei que estava aborrecido, pois fazia lindos teleteatros dirigidos por diretores bons, famosos, de teatro, e estava chateado. Ele falou: “Faça e capriche, porque está fazendo sucesso”. A audiência cresceu, multiplicou, e aí nós vimos o potencial. A gente vivia louca para resolver o tal do teatro popular, e a novela mostrou que podia ser o teatro popular.
CF: Acho isso a coisa mais bacana da televisão. Ela democratiza. Você pode questionar, mas, se é bem executada…
TM: O Boni, particularmente, teve o cuidado de chamar muito bons autores. Glória fez uma novela chamada O Grito (1975), escrita por Jorge Andrade.
CF: Gente, que loucura.
TM: Braulio Pedroso. Fiz duas ou três novelas do Lauro Cesar Muniz. Gilberto Braga. Dias Gomes. Janete Clair. Gente muito boa.
CF: Você fez muita novela da Janete. Você era a versão masculina que a Janete gostava.
TM: Eu e o [Francisco] Cuoco, nós alternávamos. Os personagens dela eram muito másculos, viris, determinados. Ela tinha uma coisa épica. Isso criou uma marca que me acompanhou durante alguns anos.
CF: Um trabalho é bom por diversas razões. Tem algum personagem que foi um sonho, em que tudo era bom?
TM: Tive alguns que amei mesmo fazer. Gostei muito do Juan Gallardo, da novela Sangue e Areia (1968); um personagem rústico, analfabeto. O João Coragem, de Irmãos Coragem (1970), era também um personagem bonito. E o capitão Rodrigo, que nunca imaginei fazer. Sempre fui muito fã do Erico Verissimo, conheci pessoalmente, fui à casa dele, li tudo dele. Eu ia fazer o Licurgo Cambará, aí acho que o capitão não deu certo e me chamaram para O Tempo e o Vento (1985).
CF: Por que não fazem mais adaptação de clássicos da literatura para a televisão?
TM: Por que não, né? Não sei. Não me meto nisso, não.
CF: Eu era menina e me lembro de você; achava o homem mais espetacular da face da terra.
TM: Eu não tinha mais idade para fazer o capitão Rodrigo. Digo que ele é o homem que todo homem queria ser. E que toda mulher queria ter. A família aceitou que eu fizesse.
CF: Ele tinha caráter, força.
TM: Mas fiz com muita dificuldade. Nunca vi um piano nem um violão na minha vida, e ele cantava. E eu já tinha 50 anos, o personagem, 30 e poucos. Mas tudo bem.
CF: A gente viveu uma época em que não havia a tirania da juventude. As protagonistas eram a Dina Sfat, a Glória. Hoje, se elas têm 35, têm de fingir que têm 22 [risos]. A Dina fez O Astro (1977-1978) com quase 40 anos.
TM: As novelas mudaram um pouco, a técnica, o conteúdo. Nós nos esforçamos ao máximo para fazer a novela dar certo. Mudou completamente a condição do ator brasileiro. Nós tínhamos de ter três empregos, fazer telenovela. O começo da teledramaturgia foi difícil, muito trabalhoso. Todo mundo se acostumou.
CF: Como a peça O Camareiro chegou a você?
TM: Ela tem uma história diferente. Em 2017, o Kiko Mascarenhas comprou a peça e chamou o Ulysses Cruz para dirigir. Eles inventaram de eu fazer o personagem do ator em crise, difícil e bem diferente de tudo o que eu fiz até hoje. Achei o desafio muito bom, porque vi o filme da peça, com o Anthony Hopkins. Quem fez foi o Albert Finney. Tem uma cena inesquecível na estação de trem, a composição começa a andar e ele diz: “Stop that train!”. Jamais esqueci isso, um grito que parava navio!
CF: Nunca pensei escutar isso de você, sobre um personagem que nunca tinha feito antes.
TM: Ele tem uma certa diferença de nós todos, porque é um ator que faz Shakespeare a vida toda. Tem a minha idade. Ele não é teatral, mas carrega uma teatralidade, uma maneira de se tratar e de falar com outras pessoas, interessante. Não esperava que ele me convidasse. Fiquei muito envaidecido com isso. Não foi muito bem, por isso remontamos a peça, ele passou para mim. O Kiko fez o camareiro muito bem-feito.
CF: Tarcísio! Eu vi você no Rio! Lembrei disso agora, vi você com o Kiko nessa montagem.
TM: Então agora você tem de ver com o Cassio [Scapin]. Ele também faz muito bem, e faz diferente. O que é a visão de um ator de talento, não é?
CF: Dois atores lendo o mesmo roteiro traz dois resultados diferentes… E quantas novelas você fez?
TM: Não sei, não dá para saber. Foi tanta novela.
CF: E quantos anos de carreira?
TM: Completo 60 anos de carreira agora em dezembro.
CF: Nossa, Tarcísio, que loucura, que prazer, não? Ser ator no Brasil e sobreviver da sua arte.
TM: E casado há 56 anos. Mas foi uma vida dura, difícil. E quero mais. Mas parece que os autores acham que não existem pessoas da minha idade.
CF: É uma loucura isso, uma inversão de consciência. Sabe que nos Estados Unidos hoje, e na Europa, o mercado da terceira idade, inclusive o de entretenimento, só cresce?
TM: Você tem razão. Há um descabido desinteresse pelas pessoas mais velhas.
CF: Fiz três filmes pequenos nos Estados Unidos, mas uma coisa que me chamou muito a atenção era que, quando eu chegava ao set, todo mundo falava assim: “The talent is in the set’’. Uma demonstração de respeito.
TM: Eles têm muito respeito pelo ator. Fiz um filme francês; enquanto esperava para gravar, conversava com a equipe, contava histórias. Num determinado momento, o diretor de cena chegou com educação e perguntou: “Senhor Tarcísio, estamos prontos”. Eu nem dei bola, continuei. Ele voltou mais uma vez. E eu, acostumado com o Brasil, continuei sem dar bola. Só quando terminei é que ele disse: “E agora, o senhor está pronto? Estamos lhe esperando” [risos]. Aqui no Brasil, tínhamos um diretor de cena que chegava falando alto: “Tarcísio, vamos lá, é sua cena agora” [risos].
CF: Você construiu a história da televisão brasileira!
TM: Fui um dos participantes dessa historia. Eu e Glória, vou te contar…
CF: Muito ativos, né? Glória continua elétrica?
TM: Dona Baratinha.
CF: Sabem tudo, vocês dois.
TM: Criamos vícios também. Nós nos acostumamos com o teleteatro. Era ao vivo, uma adrenalina que você não faz ideia. Hoje a luz vermelha da câmera não acende mais, mas eu gosto de saber quando estou no ar. A gente trabalhava com duas ou três câmeras, mas sabendo do movimento delas, para se colocar da forma que o diretor queria, para dizer as falas a hora que acendesse aquela câmera.
CF: Se você é um ator, é com a câmera que você contracena. Isso faz o maior sentido.
TM: Tem de esperar, pausar. [Walter] Avancini foi um grande diretor. Sabia tudo. Ele inventou a movimentação de câmera, a colocação. A gente se movimentava muito. Com ele fizemos A Deusa Vencida (1965), uma novela muito bonita. A Glória era a deusa, mas ele me chamou para fazer outro papel, não o protagonista. Edson França fez o protagonista. A minha estrelinha era Regina Duarte, estreando na televisão. E nunca mais trabalhei com Regina. Curioso, né?
CF: Muito!
TM: Sabe, na Globo estreei como um ator muito rústico, analfabeto, grosso. Quando o Avancini me chamou para fazer Grande Sertão, ele mostrou dois personagens: “Tem esse, que é lindo; quando ele se levanta, o mundo se levanta com ele. O outro é o demônio.Qual você quer fazer?”. “O demônio”, eu respondi. “Mas põe rústico nisso” [risos].
CF: O que você diria a um ator novo?
TM: Nada. Eu acho que essas coisas se descobrem, como você descobriu, como eu descobri. Cada um tem de seguir os seus impulsos, a sua intuição sobre as coisas.
CF: Uma coisa que só a experiência dá, né? Olhar o outro, ter uma opinião sobre aquilo e ainda assim permitir que ele faça da forma dele.
TM: Não dá para dizer nada para ninguém. Eu não digo, não. O que vale a minha experiência? O mundo é outro, a realidade é outra. Sabe, nós éramos menos numerosos, muito mais unidos, tínhamos [o restaurante] Gigetto… Lá nós tramávamos tudo, toda noite. As produções, o que ia ser, se era novela, se era teatro. Era um ambiente superdemocrático; você iniciante se sentava com Cacilda [Becker], Sergio [Cardoso]. Todo mundo confraternizando. E não pagávamos a conta [risos]. Era isso e era muito bom.
CF: Você ainda quer atuar mais?
TM: Ontem me perguntaram se eu queria fazer Rei Lear. Adoraria, mas não tenho condição. É um personagem que precisa ser feito por um ator mais jovem. Mas nunca houve um personagem que eu sonhasse em fazer. O que vinha, eu embarcava. Ator não se aposenta, ator quer trabalhar, trabalhar. Sempre quer mais.
CONTRAPONTO | “Um ator nunca se aposenta” por Milene Chaves. Fotos Fernando Moraes. Matéria publicada na edição 114 da Revista Versatille.