O renascimento do Teatro Cultura Artística
Destruído por um incêndio, o tradicional (e amado) teatro paulistano atravessa reconstrução com projeto de R$ 100 milhões – será entregue em 2021 com salas de espetáculos, restaurante, café e livraria
São Paulo amanheceu horrorizada no domingo, 17 de agosto de 2008. Uma espessa nuvem se alastrava pelo centro da cidade, escurecendo as janelas dos altos andares. Aos poucos, atônito, o paulistano tomou ciência: uma de suas maiores joias havia sido consumida por impiedosas labaredas. Símbolo do desenvolvimento cultural dos anos 1950, o Teatro Cultura Artística, que havia sido inaugurado com concertos de Camargo Guarnieri e Heitor Villa-Lobos, estava perdido.
As chamas destruíram por completo sua gigantesca sala de espetáculos, cenários, camarins e equipamento – inclusive dois pianos Steinway, um deles, à época, avaliado em mais de US$ 100 mil. “Acompanhei pela cobertura dos jornais e emissoras de televisão. Foi muito forte”, diz Frederico Lohmann, hoje superintendente do Cultura Artística, que, à época, era um de seus assinantes. Em 2011, deixou o mercado financeiro para assumir o comando com uma missão histórica: reconstruir sua majestosa sede.
Do pouco que se salvou do teatro original, o grande milagre foi o painel de 8 metros de altura e 48 de largura, pintado por Di Cavalcanti na fachada. Permaneceu como testemunha das glórias de décadas passadas e, espera-se, do renascimento que se desenha. Onze anos após o desastre, o Cultura Artística anunciou em julho último o fim da primeira fase das obras de sua reconstrução, que começaram em março de 2018 e orçadas em R$ 50 milhões. “Tivemos mais de 400 doações, grande parte delas de pessoas físicas, como foi na construção original do teatro em 1950”, afirma Lohmann.
As obras estruturais duraram pouco mais de um ano e envolveram fundações, estrutura e vedação do prédio, para que possa esperar, protegido, a fase de finalização. Agora, os operários fazem uma pausa estratégica de um ano, para que a direção da instituição consiga levantar junto à sociedade civil e por meio de leis de incentivo os outros R$ 50 milhões de que precisa para os acabamentos e compra dos equipamentos necessários para sua inauguração, prevista atualmente para novembro de 2021, após minuciosa bateria de testes. Uma série de eventos ajudam na segunda campanha de arrecadação. Ao todo, as obras custarão R$ 100 milhões.
“É importante que as pessoas se apropriem desse patrimônio e ajudem no processo de reconstrução, pois só assim teremos de volta uma referência cultural e um importante local de convivência, de cultivo de sensibilidade e de conscientização do valor da cultura patrimônio para todos”, diz Yara Caznok, professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista.
O novo Cultura Artística, cujo projeto arquitetônico foi criado por Paulo Bruna, com apoio de consultores internacionais, não destoa do original, de Rino Levi, marco da arquitetura moderna tombado nas esferas municipal, estadual e federal. Apesar do respeito ao passado, ele quer renascer como mais que um teatro em seus quatro andares (a área construída será de 7,6 mil m2 ). A construção prevê, por exemplo, um novo foyer de vidro voltado à Praça Roosevelt, como símbolo de seu diálogo com a diversidade social de São Paulo, além de um restaurante, livraria, café e intensa programação de atividades educativas. A enorme sala, que antes tinha cerca de 1.100 lugares, voltará com 750 assentos, capacidade mais em sintonia com os tempos atuais. Hoje encher uma palestra tão grande infelizmente virou tarefa hercúlea. A sala pequena também voltará menor, com auditório flexível para até 200 pessoas.
A programação da sala maior será dedicada tanto à música clássica como à popular, de jazz, espetáculos para a família e música eletrônica, como no Rio acontece na Sala Cecília Meirelles. Vai ser um espaço plural. Já a menor abrigará espetáculos teatrais mais intimistas, com proporções similares às de casas do entorno, caso das tocadas pelos Satyros e Parlapatões. “Ver a sociedade civil construir um teatro dessa magnitude em pleno século 21 não é algo comum, ainda mais em um contexto de grave crise econômica e política no Brasil”, comenta Lohmann. “Às vezes me dizem: ‘você é corajoso’. Aí eu penso: ‘não sei se é coragem ou loucura’ [risos]. Mas isso é fruto da confiança do público que acompanha nossa instituição há mais de 100 anos.”
A história do Cultura Artística se confunde com a modernização da cidade e da própria cultura brasileira. Ostenta o título de instituição cultural privada mais antiga da América Latina – foi fundado em 1912 por nomes como o poeta Olavo Bilac e o escritor Mário de Andrade. Ambos integravam uma efervescente São Paulo com sede de modernidade, desejosa de deixar para trás os ares rurais em busca de uma metrópole vibrante e cosmopolita, na época já com 500 mil habitantes. A elite local, esbanjando fartura advinda do café e de seus barões, clamava por programação cultural que não deixasse nada a dever aos grandes centros europeus.
Ainda sem sede própria e alugando o Theatro Municipal para seus espetáculos, o Cultura Artística fundou em 1934 a primeira orquestra de São Paulo, mais tarde transferida para a administração pública. A associação funciona desde então de forma simples: um clube no qual sócios pagam mensalidades para desfrutar de sua requintada programação cultural.
Foram os sócios mais visionários entre esses que determinaram: era necessário ter um teatro próprio. Foi assim que uma dedicada campanha junto às mais importantes famílias paulistanas arrecadou os fundos necessários para a construção do prédio na então chamada Rua Florisbela, que mais tarde ganhou o nome de Nestor Pestana, um de seus fundadores. “Uma instituição como essa é comum nos Estados Unidos, mas é muito rara no Brasil: uma associação da sociedade civil que promove cultura sem ter uma ligação com o governo”, comenta o superintendente.
O distanciamento de desmandos políticos permitiu às lideranças do Teatro concentrar-se na difusão cultural. Além disso, a construção da sede própria permitiu usar recursos financeiros, antes empregados no aluguel de salas, para aprimorar ainda mais a qualidade da programação. A sala também trazia recursos, pois, quando desocupada pelos sócios, podia ser alugada para terceiros. Resultado: logo se tornou uma pérola da vida paulistana. “Um grande mérito do Cultura Artística é sua curadoria, que sempre escolheu boas peças. Isso o transformou em referência de qualidade. Uma peça que se apresentasse em nosso teatro era sempre vista como boa. E com razão”, diz Lohmann, destacando a presença ao longo de sua história de espetáculos com grandes atores, como Paulo Autran, Bibi Ferreira, Antonio Fagundes, Ney Latorraca e Marco Nanini – este último estava em cartaz com O Bem Amado quando tudo pegou fogo, em 2008. Devido a essa tradição, o incêndio abalou também a classe artística. “O incêndio virou tudo de cabeça para baixo”, lembra Lohmann.
Diante dessa reviravolta, o Cultura Artística precisou de tempo para expiar o desastre e reavaliar novos tempos, em diálogo com a nova São Paulo. “Foi um grande desafio o que aconteceu e, ao mesmo tempo, a instituição aproveitou para se rever nesses dez anos. A cena cultural hoje é muito diferente.
Era preciso pensar o que seria esse novo prédio e de que forma ele iria se inserir na vida da cidade”, explica. “Isso foi um processo muito rico. A gente não ficou parado dez anos. Promovemos muitas atividades, muitas parcerias educativas. Esse foi o tempo necessário para amadurecer, conseguir o dinheiro das doações e as aprovações do projeto de reconstrução.”
A segunda fase de obras começa em julho de 2020 e tem previsão de durar um ano exato. De julho a novembro de 2021 serão feitos todos os testes necessários para a reinauguração do Cultura Artística. Certamente, como foi em 1950, tal noite vai mobilizar a cultura paulistana e será um marco no processo de revitalização do centro da cidade. Mais uma vez, o Cultura Artística emocionará a metrópole. Só que, dessa vez, com o renascimento de um antigo tesouro cultural.
PATRIMÔNIO por Miguel Arcanjo Prado | Matéria publicada na edição 113 da Revista Versatille