A dama oculta do rodeio

No comando do tradicional endereço paulistano, precursor das churrascarias chiques do país, brilha a head Silvia Levorin, a herdeira do restaurateur Roberto Macedo, cuja dinastia teve início há quase seis décadas na gastronomia da capital No

No comando do tradicional endereço paulistano, precursor das churrascarias chiques do país, brilha a head Silvia Levorin, a herdeira do restaurateur Roberto Macedo, cuja dinastia teve início há quase seis décadas na gastronomia da capital

 

No teatro, cinema ou mesmo na literatura universal, há personagens “invisíveis”, cujo temperamento e atitudes acabam por esconder a sua verdadeira força e talento, o que as tornam quase ocultas para grande parte das pessoas. Caso, dentre outros, dos protagonistas do romance O Herói Discreto (2013), do Nobel de Literatura de 2010, o escritor peruano Mario Vargas Llosa. Ou, ainda, na restauração paulistana, da discreta executiva Silvia Levorin, head da tradicional churrascaria Rodeio, de São Paulo, que se encaixa perfeitamente a esse perfil de empresário.

 

Por trás das grelhas da quase sessentona churrascaria dos Jardins e longe dos holofotes da mídia especializada, hoje mais afeita ao brilho de chefs-celebridades e a modismos passageiros — essa executiva de temperamento, fala e gestos elegantemente low profile comanda com mão de ferro, extrema sobriedade e zelo profissional, o festejado endereço da capital, ponto de encontro em décadas passadas de habitués ilustres mas que até hoje conserva a atmosfera classuda, a velha aura e o alto nível de sua cozinha. E que apesar dos anos (em 2018, a casa completa seis décadas de vida — bravo!) permanece arrastando para o número 1498 da rua Haddock Lobo, no coração dos Jardins, uma clientela fiel e cativa, fato raríssimo no ultracompetitivo cenário da restauração de São Paulo.

 

Classe de 1964, psicóloga e artista plástica de formação, Silvia começou a trabalhar no restaurante ao lado do pai, Roberto Macedo, fundador da Rodeio, aos meros 21 de idade. Igualmente discreto como a filha, esse expoente da gastronomia na capital paulista, inaugurou na capital um novo estilo de servir carne — as chamadas churrascarias chiques —, nas quais, diferentemente dos tradicionais rodízios, se oferece um serviço diferenciado no trato de cortes únicos e exclusivos. No caso da Rodeio, a sua então inédita picanha fatiada era finalizada à mesa em grelhas individuais, à frente do cliente, acabou por consagrá-la e é até hoje seu principal carro-chefe, representando 60% das vendas, ao lado de outros dois patrimônios culinários paulistanos que levam a assinatura da casa: o arroz Biro-Biro e do creme de papaia com cassis, exclusividades criadas na Rodeio e exaustivamente copiados por outros restaurantes por toda a cidade e, em seguida, pelo país afora.

 

Para falar sobre o seu estilo de gestão, bem como a origem desses pratos, o pioneirismo e sucesso longevo da casa e os personagens que fizeram a história desse emblemático endereço da gastronomia de São Paulo, bem às portas de completar 60 anos de vida, Versatille conversou com Silvia Levorin durante uma tarde inteira no charmoso bar em estilo inglês do restaurante. Confira, a seguir, os melhores momentos desse saboroso bate-papo.

 

VERSATILLE — Seu pai, Roberto Macedo, foi precursor na criação de um estilo de restaura- ção em São Paulo e no país, ao fundar as chamadas “churrascarias chiques”. Antes de virar superintendente e head da casa, qual era sua ligação com a gastronomia?

 SILVIA LEVORIN — Meu pai nunca formou os filhos, tanto eu quanto meus dois irmãos, para seguir os passos dele. Ele acreditava que deveríamos seguir a nossa vocação. Me formei em psicologia e artes plásticas. Com 21 anos, quando buscava um estágio para trabalhar, minha mãe sugeriu que viesse para o restaurante. Nunca havia trabalhado antes. Meu pai no início não gostou muito da ideia. Mas depois ele sentiu que eu estava determinada e dando conta das coisas. Que queria mais do que uma cadeira da filha do dono. A partir daí me senti super acolhida tanto por ele quanto pelos funcionários. E aprendi e cresci muito, desde então. Puxa, e pensar que já se passaram mais de 30 anos. A Rodeio foi e continua sendo uma verdadeira escola para muitas gerações de profissionais. E para mim não foi diferente. Uma empresa familiar mas com mentalidade e gestão profissionais desde aquela época, que tinha um plano de carreira e buscava aperfeiçoar processos e a qualidade do produto.

 

VERSATILLE — Sim, é verdade. Além disso, a Rodeio tem o mérito de formar ótimos profissionais. E muitos deles permanecem por muitos anos. Por que isso ocorre?

SILVIA — Sim, a pessoa entra aqui sem nenhuma experiência e tem a oportunidade de crescer na cozinha ou no salão. E como nosso atendimento é diferenciado, já que boa parte dos nossos pratos é finalizada à mesa, precisamos de profissionais bem formados e capacitados. Essa filosofia foi implantada ainda nos anos 1960 pelo gerente à época, Ramon Mosquera Lopes (já falecido), um tarimbado profissional espanhol que foi o principal responsável por estabelecer esse padrão de serviço. O garçom, portanto, além do atendimento, deve dominar algumas técnicas culinárias para finalizar o prato na frente do cliente — e estar sempre motivado.

 

VERSATILLE — Um grande trunfo da casa, não?

SILVIA — Sim, por serem diferenciados, nossos “garçons-churrasqueiros”, e o próprio chef de cozinha que foi formado aqui, são muito valorizados e disputados no mercado, pois se sentem estimulados profissional e pessoalmente. Tanto que a maioria permanece por muito tempo. Boa parte tem 25, 30 anos de casa. Nosso turn-over é muito baixo se comparado ao mercado. Isso contribui diretamente para mantermos a regularidade e o padrão de qualidade sempre alto, em boa medida, para o sucesso da casa e nossa longevidade.

 
Silvia Levorin

 

VERSATILLE — Ainda sobre essa questão, a Rodeio pertence a uma geração de restaurantes em que o maître e o garçom tinham o papel de protagonistas. Hoje quem brilha e é supervalorizado é o cozinheiro e os chefs que viraram celebridade…

SILVIA — Sim, há de fato essa inversão. Mas devemos lembrar que o trabalho do garçom é tão importante quanto o do cozinheiro. O trabalho de ambos deve funcionar como um relógio, em harmonia, pois um depende do outro. Se o garçom não leva o prato à mesa no timing certo, certamente vai chegar frio à mesa. É fundamental, portanto, que se valorize o profissional de salão tanto quanto o chef, pois o sucesso de uma casa depende do brilho de ambos. Por outro lado, nunca entramos nesse modismo ao longo de toda a nossa história. Além de um chef renomado, que nunca cogitamos, passamos ao largo de contratar uma hostess, por exemplo, quando isso era sinônimo de ser “moderno”. Pensamos: se temos um maître tarimbado que conhece nossos clientes pelo nome, por que contratar uma modelo para recebê-los? Com o tempo, percebemos que estávamos certos.

 

VERSATILLE — Na restauração paulistana, a Rodeio foi pioneira na importação e oferta de cortes argentinos. Hoje de onde provém as carnes que são servidas à clientela?

SILVIA — Compramos há muito tempo a picanha, nosso carro-chefe, e outros cortes como o chorizo e o bife ancho, do mesmo fornecedor da Argentina. Mas, hoje, também há uma oferta de cortes nacionais, como a fraldinha, cuja qualidade melhorou sensivelmente nas últimas décadas. Mas é importante dizer que nossas parcerias são longas também com nossos fornecedores.

 

VERSATILLE — Tanto a picanha fatiada quanto o arroz rodeio (também conhecido como arroz Biro-Biro) e o creme de papaia com cassis são marcas registradas da casa e patrimônios culinários de São Paulo. Foram copiadas por outras casas e hoje integram o menu de vários restaurantes da capital e do país. Quando esses dois últimos foram criados e de quem foi a ideia de criá-los?

SILVIA — O arroz Biro-Biro foi uma homenagem dada ao conhecido ídolo corintiano, que atuou nos anos 1980, durante a fase da chamada “Democracia Corinthiana” [movimento de jogadores do clube paulista que tinha como líderes o falecido jogador Sócrates e o hoje comentarista de futebol, Casagrande, dentre outros, no mesmo período dos megacomícios populares, como as Diretas Já, de redemocratização do país] pelo Whashington Olivetto (publicitário), Tarso de Castro (jornalista carioca já falecido, articulista da Folha de S.Paulo), Glorinha Kalil (jornalista e consultora de moda) e Thomaz Souto Corrêa de Castro (diretor da editora Abril à época e conhecido gastrônomo), além do próprio Sócrates, em um jantar ocorrido naquela época.

 

VERSATILLE — Foram esses clientes que criaram a receita, então?

SILVIA — Sim, eles iam dando as opiniões e nossos maîtres e garçons escutavam e faziam o que era pedido pelo grupo. “Coloca mais bacon, salsinha, batata-palha” e assim por diante. A cada reencontro do grupo, incorpora-se algum novo ingrediente. Caso do ovo rasgado — e daí o nome de batismo do prato. A cor da gema logo remeteu ao famoso cabelo do ex-volante do Timão (à época e até hoje tingido de amarelo). Foi assim, de forma bem divertida, que nasceu esse prato.

 

VERSATILLE — E a picanha fatiada e o creme de papaia?

SILVIA — A picanha teve inspiração nas parrillas argentinas, com as carnes assadas primeiramente na churrasqueira e a seguir finalizadas em fogareiros à mesa e à vista do cliente. Com o incômodo da fumaça no salão, fomos aprimorando ao longo do tempo esse sistema. Já o creme de papaia foi criado na mesma época do arroz Biro-Biro para a artista plástica Suzy Gheller (já falecida), habitué da casa e grávida de sua primeira filha, que havia pedido uma sobremesa leve e refrescante para um dos nossos maîtres. Daí a novidade ganhar a clientela e outros restaurantes da cidade, que passaram a reproduzi-lo foi questão de tempo.

 

VERSATILLE — Além desses pratos icônicos, a casa também ficou conhecida por cativar uma clientela de jornalistas, publicitários e formadores de opinião. A que você atribui essa frequência ilustre?

SILVIA — Embora seja verdade e nunca quisemos reforçar isso, creio que seja um reconhecimento de um trabalho sério. Por termos sido pioneiros e a imagem inicial de uma “churrascaria chique”, creio que tenhamos conquistado não só essas pessoas, mas também o executivo que trabalha na região da Paulista e mesmo as famílias aqui do bairro, sobretudo nos fins de semana. Como temos um modelo de gestão familiar, a nossa clientela tem também esse perfil, e se sente à vontade aqui, principalmente as crianças, já que nossa comida é descomplicada, comfort, bem ao gosto desse público. O cliente já sabe o que vai comer e tem a segurança da qualidade que vai encontrar.

 

VERSATILLE — A Rodeio é um dos raros exemplos de restaurantes do mercado a ter a certificação ISO 9001 obtida há quase duas décadas. Quantos funcionários trabalham hoje na matriz e na filial do shopping Iguatemi?

SILVIA — Temos nas duas casas, no total, 180 funcionários. Sobre a ISO gostaria de ressaltar que é uma certificação que quase nenhum restaurante tem ou dá valor mas que é fundamental para aprimorar a gestão, padronizar processos internos, o que resulta em muitas melhorias, em um serviço diferenciado e profissionais motivados. Além disso, fizemos uma consultoria de sucessão familiar para não repetir erros da geração anterior. Ou seja, nossa política de qualidade poderia ser sintetizada assim: trate o cliente bem e faça com que ele se sinta em casa para que ele tenha vontade de voltar.

 

VERSATILLE — A Rodeio completa 60 anos em 2018. Qual o segredo para alcançar tamanha longevidade, mantendo a qualidade sempre em alto nível?

SILVIA — Em uma frase: olhar e respeitar a tradição mas estar sempre atento e preocupado em inovar. Ou, em outras palavras, o clássico que se renova. Ou, ainda, buscar a evolução constante. Isso vale também para fornecedores, colaboradores e funcionários. Esses, em especial, têm a obrigação de passar informação e conhecimento para a sua equipe. A ideia é que quando ele se aposente — até eu mesma farei isso um dia! — a Rodeio continue.

 

VERSATILLE — Durante essas quase seis dé- cadas, creio que haja muitas histórias e personagens que ficaram na história, não?

SILVIA — Sim, são muitas. Além de pedidos de casamento de gente famosa e fechamentos de contratos em grande estilo, a Rodeio já recebeu a visita de presidentes e ex-presidentes como FHC e Lula. O artista plástico e pintor Aldemir Martins (1922- 2006) tinha cadeira cativa aqui. A lista é grande: Omar Sharif (o famoso ator egípcio, 1932-2015). Os ex-bailarinos russos Rudolf Nureyev (1938- 1998) e Mikhail Barishnikov. O tenor italiano Luciano Pavarotti (1935-2007), que, depois de jantar, pediu várias bolas de sorvete de creme, misturou com café e fez o seu próprio affogato à mesa. E o cantor americano Ray Charles (1930-2004). Sobre este, por sinal, há uma história curiosa. O Chagas, nosso maître à época e hoje gerente da filial no Iguatemi, não o conhecia direito. Ele ligou para mim preocupado e disse: “Dona Silvia, fulano vem aí com um cantor ceguinho. O que eu faço?!” (risos).

 

VERSATILLE — Vocês também testemunharam os movimentos do mercado paulistano de restauração no último meio-século. Quais as diferenças entre o cliente de antes e o de hoje?

SILVIA — No geral, o paulistano está mais exigente, bem informado e educado. Nosso público também é assim e não aceita o que não for melhor. E isso vem ao encontro exatamente do que almejamos: atendê-lo da melhor forma possível superando a sua expectativa.

 

VERSATILLE — E qual o principal desafio de um restaurante consagrado, como a Rodeio, e o seu em particular?

SILVIA — Minha meta e de toda a equipe da Rodeio, incluindo nossos fornecedores, é perpetuar esse nosso modelo de restauração, tendo a premissa da melhoria contí- nua, preconizada pela ISO, como inspiração no dia a dia. A preocupação é de nunca dormir nos louros. De estar aberto às novidades, mas não a modismos passageiros. Para tanto, necessitamos que todo mundo — do ajudante de cozinha ao manobrista — estejam comprometidos com isso. Minha tarefa, nesse caso, é facilitada, pois tenho um time que me ajuda muito e divido as responsabilidades com ele. A Rodeio, afinal, é uma grande família.

 

Business por Marco Merguizzo | Matéria publicada na edição 94 da Revista Versatille

 

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