Livio Abramo : Insurgência e lirismo

Com cerca de 120 obras, exposição sobre o artista plástico Livio Abramo (1903-1992), com curadoria de Paulo Herkenhoff, na Biblioteca Mário de Andrade, traça um panorama da sua inserção na modernidade do século 20 e

Com cerca de 120 obras, exposição sobre o artista plástico Livio Abramo (1903-1992), com curadoria de Paulo Herkenhoff, na Biblioteca Mário de Andrade, traça um panorama da sua inserção na modernidade do século 20 e marca início das atividades do Instituto Livio Abramo

 

Livio Abramo não é apenas, com Oswaldo Goeldi, um dos mestres clássicos da moderna gravura brasileira. Devido à sua inquietação, à sua atividade e à sua inovação permanente, ao longo da sua trajetória, ele sempre foi moderno e meticuloso com a sua produção artística.

 

A história da sua carreira é uma expressão do conturbado século 20, em que uma vida de militância política e social, atravessada por uma visão humanista do mundo, conviveu com a consciência aguda das exigências e da necessidade do domínio técnico na exploração das possibilidades da gravura em madeira, a luta por um refinamento artesanal nas texturas e pela virtuosidade da sua expressão artística. O crítico e cineasta Olivio Tavares de Araú- jo analisou as suas relações com a arte gráfica do expressionismo alemão. Mario Pedrosa, por sua vez, destacou a sua importância na modernidade emancipatória política do século 20. Aracy Amaral relembra a origem política do artista: trotskista e marginalizado pelo Partido Comunista, que defendia Portinari e Di Cavalcanti.

 

Seja no contexto sociopolítico ou na inserção nas vanguardas modernas, a obra do gravador, ilustrador e desenhista paulista Livio Abramo (1903-1992) destaca-se pelo rigor formal, tendo a gravura como a sua autêntica linguagem de expressão.

 

Passados quase 25 anos da morte do artista, o Instituto Livio Abramo abre ao público um rico acervo — grande parte pertencente à família — com cerca de 120 obras.

 

Em cartaz até 16 de março de 2017, na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, a exposição Livio Abramo: insurgência e lirismo reúne linoleogravuras, xilogravuras, litogravuras, aquarelas, grafites e nanquins, além de matrizes em madeira, matrizes em linóleo, clichês de metal, croquis, estudos e provas do artista, reunindo uma produção de quase 70 anos de trabalho. O panorama com curadoria assinada por Paulo Herkenhoff destaca os territórios estéticos e conceituais do artista, sobretudo, assinalando a sua importância como gravurista.

 

A exposição assinala o início das atividades do Instituto Livio Abramo com a organiza- ção e a digitalização do acervo da família pelo Programa Rumos do Itaú Cultural e propicia uma releitura de todo o conjunto da obra do artista, após uma década da última individual de Livio Abramo, realizada no Instituto Thomie Ohtake. Agora, pelo olhar curatorial de Paulo Herkenhoff, essa nova exposição objetiva rever a obra, valorizando Livio Abramo não apenas como pioneiro da xilogravura no Brasil, mas como um artista vigoroso, que dialoga com os movimentos sociais e artísticos do século 20, criando soluções formais inovadoras para responder às angústias de um homem e artista dentro do contexto histórico e social em que ele viveu.

 

Nesse sentido, Paulo Herkenhoff, que teve contato com Livio Abramo em Assunção, no Paraguai, em pleno ano de 1968, e que depois selecionaria obras do artista para diversas exposições, realiza uma curadoria dinâmica e ousada.

 

As escolhas de Herkenhoff permitem uma interpretação original, a partir de um diá- logo com artistas do período, do contexto sociopolítico e das lutas dos movimentos sociais da época, sem perder de vista a capacidade transcendente da produção artística de Abramo, que desvela questões ainda contemporâneas.

 

Ao lado de originais do acervo do Instituto Livio Abramo, a mostra inclui ainda empréstimos de trabalhos de coleções de outras importantes instituições brasileiras, como o Museu de Arte do Rio e a própria Biblioteca Mário de Andrade, assim como obras da Fundação Biblioteca Nacional.

 

Obras de José Clemente Orozco, de Louise Bourgeois, de Rossini Perez, de Lasar Segall e  de Kathe Kollwitz aparecem no programa como diálogos, convergências e rupturas entre Livio Abramo e outros expoentes de sua geração.

 

Além da presença das obras físicas, Livio Abramo: insurgência e lirismo conta ainda com um programa educativo, composto de mesas de debates, de palestras, de cursos de formação e da exibição de documentário inédito, que mostra o processo de trabalho do xilogravurista Rubem Grilo, que usou matrizes de oito obras de Abramo para reimpressões, que farão parte da exposição.  Ao lado de Grilo, um dos principais nomes da xilogravura na atualidade, e do curador Paulo Herkenhoff, o documentário intitulado “Livio Abramo: o profundo mistério dos horizontes inacabados” (11 minutos), produzido pelo Instituto Livio Abramo, inclui depoimentos de nomes como Frederico de Morais e Ferreira Gullar.

 

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DA INQUIETUDE À PLÁSTICA DO MUNDO ESPIRITUAL

Tanto a forma quanto o conteúdo da exposição aliam o rigor do uso da gravura como linguagem com as insurgências e os lirismos, na arte e na política. Não se trata apenas de uma politização da arte, mas de agir como um precursor artístico no Brasil das teses contidas na filosofia do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940).

 

A arte, como questionamento do presente ao passado, com o poder de incluir os vencidos pela história dominante: operários, ativistas da resistência espanhola, vítimas do fascismo, negros, favelados, paraguaios, os cidadãos anônimos “sem rosto e sem voz”.

 

Se a série “Frisos”, que retrata a tragédia moderna do homem urbano no “destino” da arquitetura da metrópole, é dedicada à cidade de São Paulo, as religiões afro-brasileiras surgem como contraste, num êxtase – longe de folclorismos – que reivindica uma plástica do mundo espiritual. Como salienta o Diretor da Biblioteca Mário de Andrade, Luiz Armando Bagolin: “A concep ção da mostra sobre a importância da obra de Livio Abramo é consoante com a cidade de São Paulo, sua transformação contínua, seu ‘work in progress’. Segundo Bagolin, para a Biblioteca Mário de Andrade, além de toda a importância de Livio Abramo como artista, a sua relação com o centro da cidade, como aparece na série “Frisos”, destaca o dinamismo defendido pela instituição.

 

“O visitante tem à disposição, seja durante um passeio noturno pelo centro ou no intervalo do trabalho, uma biblioteca com uma exposição 24 horas que traduz essa dinâmica, também em termos de acesso à cultura e da formação de novos olhares”.

 

A contestação, tão atual, está consoante com a pró- pria trajetória e a identidade artística desse filho de imigrantes italianos. Na década de 1960, afastando- -se do viés oligárquico e pequeno burguês prevalecente no modernismo em São Paulo e da «fanfarra” voltada para Paris, o artista acolheu como residência o dilacerado pela Guerra da Tríplice Aliança, o Paraguai. Ali, aperfeiçoou a sua técnica de desenho e gravura, ferindo com faca ou goiva pontiaguda matrizes de madeira, metal ou pedra, segundo o curador Paulo Herkenhoff, “para abrir gravuras que expressassem a sua profunda visão da sociedade e o olhar lírico sobre o mundo”.

 

Como uma linguagem de expressão sem grandes atrativos comerciais e baixa margem de lucro, a xilogravura expõe, antes de qualquer corte, a relação com a matéria-prima como prenhe de possibilidades de significantes nas mãos do artista. “Antes de qualquer corte o que se tem na chapa é a absoluta escuridão. O corte pelo artista fere a matéria e instaura a luz, sendo, pois, a própria hipótese do olhar e da arte. Essa visão primal da imagem surgente é o tesouro do xilógrafo e a base de sua ética da linguagem”, conta o curador Paulo Herkenhoff, no texto do programa da exposição.

 

Exposição por Raphael Andrade | Matéria postada na edição 95 da Revista Versatille

 

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