Zaha Hadid: A grande dama da arquitetura
Em um mundo dominado pelos homens — não, você não está lendo um memoir de Betty Friedan — grandes mentes adornadas por brincos e saias e reconhecidas pelas grandes mentes, e não pelos brincos e
Em um mundo dominado pelos homens — não, você não está lendo um memoir de Betty Friedan — grandes mentes adornadas por brincos e saias e reconhecidas pelas grandes mentes, e não pelos brincos e saias que as complementam, continuam a ser raridade. Há, sim, lugares onde as oportunidades e as expectativas para os papéis femininos e masculinos na sociedade se tangenciam, digamos assim, mas, com certeza, o Iraque não pontua nessa lista. Como imaginar que uma menina nascida em terras afogadas em um oceano de preconceitos e limitações se tornaria um dos maiores ícones da arquitetura mundial?
Descendente de família muçulmano-sunita, Zaha Mohammad Hadid nasceu em 31 de outubro de 1950, em Bagdá, no Iraque, em uma família influente e intelectual. O pai, Muhammad al-Hajj Husayn Hadid — um industrial e cofundador do partido democrá- tico nacional no Iraque — e a mãe, Wajiha al-Sabunji, artista, foram fundamentais na educação de Hadid.
“Nunca tive dúvida se eu seria uma profissional, nunca houve limitação alguma em minha mente para o que eu pudesse vir a ser”, afirmava Hadid.
Durante a escolarização elementar, quando frequentou uma escola católica progressista que incluía estudantes franceses, muçulmanos e judeus, a curiosidade sobre a amplitude e as muitas possibilidades de pensar se fortificaram.
A arquitetura lhe chegou por meio de arquitetos amigos da família que frequentavam sua casa. Influenciada por um deles, a mãe lhe comprou um espelho assimétrico em estilo modernista. Esse espelho, segundo a própria Hadid, foi peça fundamental na escolha pela arquitetura como profissão. Entre 10 e 11 anos de idade, ainda em Bagdá, a assimetria desse espelho povoou sua imaginação e seus desenhos. Curiosamente, em uma entrevista em Londres, Hadid menciona Brasília como grande influência no seu ideal de arquitetura:
“Houve um desenvolvimento incrível e novas ideias na década de 1960 — quando construíram Brasília. Na América do Sul e no Oriente Médio, a arquitetura come- çou a representar uma nova era, um novo nível de independência, um afastamento do colonialismo para a modernidade. Tivemos a construção do campus universitário de Gropius —, havia muita coisa acontecendo”.
Em 1972, após estudar matemática na American University em Beirute, mudou- -se para Londres para estudar arquitetura na Architectural Association — AASchool.
A brilhante carreira teve início em 1977, quando começa a trabalhar no The Office for Metropolitan Architecture (OMA). Em 1980, Hadid alça voo sozinha, em Londres, com a abertura do Zaha Hadid Architects, que hoje emprega mais de 350 pessoas.
Em 1994, seu projeto fora escolhido para a Cardiff Bay Opera House, no País de Gales. Isso deu-lhe alguma publicidade e fama, mas, infelizmente, o prédio não foi aprovado para ser construído. A cidade escolheu para gastar o dinheiro em um estádio em vez de no Opera House. Quando a licitação abriu mais uma vez para a mesma Cardiff Opera, ela, novamente, ganhou, e mais uma vez seu projeto foi rejeitado. “Resistência e preconceito” foram as grandes razões, segundo Hadid. Mesmo assim, sempre afirmou não ter nenhuma mágoa em relação à Inglaterra, que, apesar de ser onde começou a trajetória como arquiteta, foi um dos últimos territórios que seus projetos conquistaram.
“Sou mulher e, mais do que isso, sou uma forasteira aqui. Há lugares em que não posso entrar”, afirmava com um sorriso quando lhe perguntavam como ainda não tinha projetos locais.
Em 2004, veio o grande reconhecimento: ela se tornou a primeira mulher e um dos mais jovens destinatários do Prêmio Pritzker de arquitetura. Esse prêmio é a mais alta honraria que um arquiteto pode receber, uma espécie de Oscar da arquitetura. Depois de dezenas de projetos espalhados pelo mundo e do reconhecimento unânime internacional, em 2005, seu projeto foi escolhido para o Centro Aquático Olímpico para os Jogos Olímpicos de Verão de Londres 2012. As fascinantes criações também foram escolhidas para as Olimpíadas de Tóquio 2020, mas, curiosamente, depois de anos de design o projeto acabou nas mãos de Kengo Kuma, arquiteto japonês. A Qatar2022 Fifa World Cup rendeu-lhe uma lista interminável de discussões com relação às condições desumanas de trabalho na construção do seu projeto do Al Wakrah Stadium.
Nestes mais de 30 anos de arquitetura, Zaha Hadid revolucionou o design mundial com suas formas que mais parecem ter saído de um filme de ficção científica. A lista pessoal de conquistas inclui mais de cem prêmios e honrarias, como o título de Dame Commander of the Order of the British Empire, concedido pela rainha da Inglaterra em 2012. Em 31 de março deste ano, Hadid — que se encontrava internada no Mount Sinai Hospital, em Miami Beach, por causa de uma bronquite — sofreu uma parada cardíaca fulminante e não resistiu. Uma lacuna se abre na arte da criação. Zaha jamais casara ou tivera filhos, sua vida era o design.
O patrimônio avaliado em 215 milhões de doláres inclui propriedades em Londres, Moscou e Miami, investimentos, cosméticos, restaurantes, um time de futebol, uma marca de vodca, perfume e uma linha de moda. Visionária, acima de tudo, suas criações abrangem, além de projetos arquitetônicos da mais absoluta beleza: o Heydar Aliyev Cultural Center, no Azerbaijão; o Maxxi Museo, em Roma; o One Thousand, em Miami; a Casa Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro; o design fashion do Set-Runway da Chanel, no Grand Palais; e de dezenas de objetos — a bolsa Icone, da Louis Vuitton; joias para a Maison Caspita e Swarovsky; a Melissa Zaha Hadid para Melissa; e tênis para a Adidas numa colaboração com o cantor Pharrel Williams, entre outros.
A arquitetura jamais será a mesma depois de Zaha Hadid. “Tudo deve alçar voo, nada deve ser amarrado ao chão”, nas suas próprias palavras, a ordem do seu legado.
art&design por Anna Mallmann, artista plástica e arquiteta | Matéria publicada na edição 91 da Revista Versatille